O DIA EM QUE HALF CAVALGOU SEU ROCINANTE IMAGINÁRIO IMITANDO A LANÇA COM UM TACO DE SINUCA PENSANDO QUE ERA DOM QUIXOTE DE LA MANCHA

 

 

Vitor de Athayde Couto

 

Galerão continua invocado com a língua inglesa.

– Isso ainda vai durar – comentou Maruzinho.

– O que ele anda aprontando desta vez? – pergunta Half, enquanto procura um giz pro bico do seu longo taco de sinuca.

É um taco especial, capaz de compensar o seu tamaninho. Ele sempre traz de casa, com muito cuidado, quando vai ao Salão Tujegue, disputar uma partida apostada. Half, baixinho, com o seu taco alongado, formam um par engraçado, até o dia em que um energúmeno pergunta pra ele, gritando, do outro lado da calçada:

– Vai pescar manjuba, ô meóta?

Half não aguenta. Do alto do seu pódio imaginário de maior campeão de sinuca de todos os tempos, aponta o taco para o energúmeno e dana-se a correr, esbravejando:

– Seu fi d’ua égua! É a tua mãe, feladaputa!

E continua cavalgando o seu rocinante imaginário, tal um domquixote, sempre a gritar, apontando o taco na direção do energúmeno, como se fosse uma lança na liça:

– Tua mãe é rapariga, teu pai é viado – etc., até o momento em que Half chama o energúmeno de corno. Aí, não prestou não. O energúmeno para, volta-se para trás, e a corrida prossegue a toda, porém, na direção contrária. Half e o taco conseguem escapar. Escondem-se em casa, de onde Half nunca mais saiu, pelo menos até o vício chamá-lo de volta ao salão. Pois num é que, no final da tarde, ele já tava lá. Saiu de casa sozinho, porém, sem o taco, para não dar ousadia a nenhum energúmeno. É que ele tinha prometido deztõe prum quebrafaca levar o taco até o salão, na boquinha da noite. Recebido o taco, pagou o prometido e usou seu prestígio de campeão junto ao proprietário do salão para ele arrumar um lugar seguro onde ficará sempre bem guardado. Half não quer seu taco pendurado em meio aos demais, com receio do mau uso, pelos clientes, o que pode acarretar uma indesejável desregulagem. Aí, adeus pontaria na bola sete.

Eis que chega Galerão, como sempre, inesperado, pois ele nunca tem rotina nem horário habitual, e vai logo anunciando:

– Descobri!

– Descobriu o quê, rapá? – pergunta Saló.

– A origem da baitolage.

Silêncio total. Nenhuma bola rola nas seis mesas do Salão Tujegue, duas de bilhar e quatro de sinuca. Alguns jogadores chegam até a recolher o dinheiro, desfazendo apostas inconcluídas (inconclusas, em parnasianês), só para prestar mais atenção na notícia. Até a porta vai-e-vem silencia seu nhém-nhém-nhém, como se também quisesse ouvir a importante notícia, a origem da baitolage. Galerão suspira, e, com o costumeiro charme, continua:

– A culpa é dos ingleses.

??? (silêncio)

– Sim, dos ingleses! – Galerão reafirma.

??? (silêncio)

– Vocês sabem, eu ando estudando inglês. Primeiro, eu quero entender a criptografia que está por trás do nome deste salão. Uns dizem que pertenceu a um judeu, outros, que o construtor foi um carcamano. Trouxe na sua bagagem as bolas de marfim, direto do Mediterrâneo. De elefante africano, daqueles bem grandões.

– E daí? – cutuca Saló – vai ou não vai desembuchar a história da baitolage?

Galerão suspira, faz uma pausa suficiente pra mostrar importância, mas a presença de Half, bem ao seu lado, lembra mais um par de santinhos pequenos, como se fossem os meninos Cosme e Damião. Ninguém diz nada. Galerão cria coragem e começa:

– Pois é, negada. No Ceará, todo mundo conhece essa história. Qualquer cearense metido a gaiato, e todos eles são ou querem ser, conhece baitolage e sabe de onde vem o nome baitola, que deu origem à baitolage. Era uma vez um engenheiro inglês, da estrada de ferro, muito fraco da munheca. Ele não acertava pronunciar a palavra bitola (largura fixa da ferrovia), só falava baitola. Aí…

– Ora, mas aqui todo mundo sabe disso – interrompe Maruzinho.

– Sim, eu sei que todo mundo sabe. Só não sabe o que significa aquele ‘bi’ na palavra bitola do trem.”

Agora, sim. Todo mundo se aproximou, curioso.

 

 

(próxima crônica: “ESTUDANDO INGLÊS”)

 

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Escute o texto com a narração do próprio autor: