O MEDO E A PESTE

Vitor de Athayde Couto

 

O Medo e a Peste marcaram um encontro em Damasco. Como essa história termina? A Covid é uma versão contemporânea da Peste. Ela provocou uma mudança enorme nos hábitos de leitura. Com exceção do Brasil, capital mundial do Big Brother, nas demais economias ricas do mundo explodem as vendas dos grandes livros relacionados às pestes que fizeram história.

 

O confinamento e a curiosidade sobre as doenças incentivam a leitura. No ranking de 2020, “A Peste”, do franco-argelino Albert Camus (1947), aparece na mídia como o livro mais vendido. Seguem, não exatamente nesta ordem: “Ensaio sobre a cegueira”, do português José Saramago (1995), “O amor nos tempos do cólera”, do colombiano Gabriel García-Márquez (1985), e “A morte em Veneza”, do alemão Thomas Mann (1912). Todos nobelizados.

 

Camus revela autoridades e aproveitadores, como o personagem comerciante que lucra especulando no mercado paralelo de produtos essenciais.

 

Saramago expõe as vísceras da sociedade dominada pelo egoísmo. Gangues de cegos exploram violentamente outros cegos em meio ao caos urbano.

 

Gabo tem outra pegada. Ele centraliza em Florentino Ariza a personificação de um grande amor, porém fora do tempo – coisas do realismo mágico.

 

Thomas Mann surpreende com passagens que poderiam ter sido escritas hoje. Ele e os outros autores citados deixam bem claro que, em todas as pestes, são os negacionistas e os egoístas escrotos que tiram proveito das misérias. No fascículo17 da coleção “Os imortais da literatura mundial”, Abril Cultural, 1971, lê-se, na página 160, o seguinte trecho de “A morte em Veneza”:

 

“(…) oitenta de cem atingidos morriam, e isto de uma maneira horrível (…). Dentro de poucas horas o doente secava e sufocava do sangue resistente como pez, sob câimbras e lamentos roucos. Feliz daquele cuja erupção se dava em forma de um profundo desmaio, depois de um leve mal-estar, do qual não acordava mais. (…) nas barracas de isolamento já não havia lugar e um tráfego horripilantemente ativo imperava entre o cais de São Miguel e a ilha-cemitério. Mas o medo de prejuízos gerais, a consideração com a recente abertura da exposição de pintura nos jardins públicos, as enormes baixas que ameaçavam os hotéis, as lojas, toda a múltipla indústria turística, nos casos de pânico e difamação, mostrava-se mais forte na cidade que o amor à verdade e o respeito a acordos internacionais, possibilitando às autoridades sustentarem tenazmente sua política de ocultar e negar. O chefe do Departamento de Saúde, um homem íntegro, renunciara, revoltado, ao seu posto, e fora substituído imediatamente por uma pessoa mais submissa. O povo sabia disso; e a corrupção dos superiores, junto com a reinante insegurança e a situação excepcional em que a morte colocava a cidade produziram uma certa indecorosidade das camadas inferiores, um encorajar de instintos obscuros e antissociais que se manifestavam por intemperança, descaramento e crescente criminalidade. Contra as normas, encontravam-se, à noite, muitos bêbados.”

 

Estariam aí reunidos os maiores nomes que escreveram sobre as pestes, no mundo ocidental, não fosse a ausência da autobiografia mais importante, “O livro de San Michele”, do médico sueco Axel Munthe (1930). Este livro é conhecido como o livro da vida. O incrível personagem Arcangelo Fusco, simples varredor de rua, faz o leitor querer acreditar na humanidade. Ele é real na autobiografia que merece ser lida por todos os profissionais de saúde que honram o seu juramento.

 

Todavia, Munthe acabou revelando que a Itália de 1930 (como o Brasil de hoje) não tinha solução. E não teve. O fascismo logo se instalou. Veio a guerra. Foi preciso esperar novas gerações para a civilização italiana recomeçar.

 

Mesmo sendo protestante, Munthe apelou para São Francisco, que o salvou da inquisição após a morte. Alegorias à parte, o seu amor pelos animais levou-me a escrever a “Arca de Noé V”, para este blog, no dia 02/10/2020, antevéspera do dia do Santo. Ver a Amazônia incendiada não faz ninguém são ser otimista.

 

Na Itália de 1930, só em Nápoles morriam mais de mil pessoas por dia. A Síria dos séculos 7 e 14, e a Veneza de 1912, também lembram o Brasil de 2020-21. Os escrotos e as narrativas não mudam. Veja-se, por exemplo, a semelhança entre chamar o povo de medroso e esta narrativa de predestinação e dominação, pelas elites, no antigo mundo árabe:

 

“Dirigindo-se a Damasco, o Demônio disfarçado de Peste cruzou com uma caravana no deserto. O chefe da caravana perguntou:

 

– Aonde vais assim com tanta pressa?

 

– A Damasco, onde pretendo tirar mil vidas – respondeu a Peste.

 

– Não faças isto. Eu te dou o meu melhor camelo! – implorou o chefe.

 

A Peste fez ouvidos de mercador. Voltando de Damasco, encontrou novamente o caravançarai. O chefe disse:

 

– Mas tu tiraste cinquenta mil vidas e não mil.

 

– Não – disse a Peste – eu tirei só mil. Foi o Medo que tirou o resto.”

 

***

 

 

A vida dos humanos civilizados divide-se em duas grandes etapas: antes e depois de aprender a ler. Mas não raro a leitura ordinária faz sofrer. Faz a realidade parecer um velho filme, e a vida parecer besta, como na “cidadezinha qualquer” de Drummond (1930). Os personagens são sempre os mesmos. As atitudes das elites e pessoas comuns do mundo real também se repetem numa espécie de “ciclo do eterno retorno”. Cotidianamente, percebem-se, em muitas delas, os mesmos jogos, tretas e valores indecorosos.

 

À parte os estilos “cartorial”, “diário oficial”, e “meu querido diário”, a literatura de valor pode conduzir-nos ao mundo da imaginação, ultrapassando os limites do velho filme. Foi quando o menino Ariano Suassuna ganhou a sua coleção d’O Sítio do Pica-pau Amarelo. Naquele instante mágico o seu mundo mudou.

 

O inglês Dickens (1812-1870) e o russo Dostoiévski (1821-1881) escreveram quase tudo sobre a alma e a natureza humana. Fizeram da Literatura uma Arte Maior que emociona. Fizeram da leitura um prazer que pode ser sentido desde a infância, em estado de liberdade. Ou não, se a censura prevalecer.