Do Escambo à Escravidão
Da Escravidão à Exploração
Diderot Mavignier
“O excessivo grau de inferioridade do escravo leva-o,
naturalmente, aos mais torpes vícios […] para fugir ao
castigo, o escravo habitua-se a mentir e rouba porque
nada possui, embora se veja cercado por objetos
tentadores, e suas mínimas necessidades quase nunca
sejam atendidas. Pode ser também que considere
o roubo uma forma de vingança. E que motivos
impediriam o escravo de ceder as suas próprias más
inclinações? Sentimentos religiosos? Poucas noções
tem ele do que seja isso. O receio de manchar sua
reputação? O escravo não tem mais reputação do que
um boi ou um cavalo e, como eles, está a margem da
sociedade humana […] O senhor de escravos vê-se,
assim, cercado de seres necessariamente abjetos e
corruptos. E no meio deles que seus filhos são criados
e os primeiros exemplos que as crianças veem são o
roubo e a dissimulação. Como não iriam familiarizar-se
com esses vícios e tantos outros mais que a escravidão
arrasta consigo? Culpemos o escravo, sem duvida, mas
não deixemos de culpar também o senhor”. (HILAIRE,
1937, p. 105).
Associar a imagem dos índios à preguiça é no mínimo não conhecer a História. Com a chegada dos primeiros exploradores a América portuguesa, começa a ser traçado o destino do trabalhador brasileiro. Com a descoberta da Terra de Santa Cruz, a madeira foi o primeiro produto a ser explorado pelos europeus. Coube aos índios o trabalho de selecionar, cortar, transportar e carregar as toras para os navios, e todo esforço trocado por míseros espelhinhos e bugigangas. A ibirapitanga era ouro na Europa, usada na construção civil, embarcações, mobiliário fino, mas principalmente para tingir tecidos de vermelho, cor da nobreza.
Durante quase todo século XVI, os portugueses estiveram sozinhos no Brasil. As exceções constituíam-se de alguns franceses e espanhóis. Nesse período, não tiveram outra gente que os ajudasse, senão os indígenas, que logo se familiarizaram com aquilo que os europeus queriam: o pau-brasil, madeira dura de difícil corte. Como não havia cavalos ou outros animais de tração ou carga, cabia ao índio fazer esse trabalho e talvez daí venha o jogo de corrida com tora. O escambo era o método usual pelo qual os europeus tratavam com os indígenas quando destes desejavam produtos ou trabalho. Embora fazendo vários serviços e entregando produtos, o índio era pago uma única vez, sempre com miçangas, ferramentas e outras quinquilharias.
Com a chegada dos donatários das capitanias e a intenção portuguesa de formar lavoura a fim de exportar produtos agrícolas, isso implicou na necessidade de trabalho abundante e disciplinado. Mas como espelhinhos não mais bastavam, alguma relação além do escambo fortuito seria necessária para garantir a satisfação dessa necessidade. Com a revolta dos índios, os portugueses começaram o processo de escravidão com os próprios nativos. Já em 1580, metade dos silvícolas brasileiros era escravizada.
Com as doenças trazidas pelos brancos e os ataques dos bandeirantes, os índios foram sendo dizimados, muitos fugiram para o interior remoto. E assim, os portugueses viram no africano a nova máquina de trabalho a ser explorada. Com os negros, os portugueses taxaram a identidade nacional: a escravidão.
Durante quase quatro séculos, mais de cinco milhões de africanos escravizados chegaram aos portos brasileiros, beneficiando desde o contratador, pois esse comércio era monopólio real, até a Igreja que ficava com cinco por cento de cada escravo vendido. Na África, lucravam os negros preadores e feitores, colaboradores do trabalho dos portugueses que não precisavam caçá-los mata adentro, adquirindo a mercadoria na praia. Em Portugal, como forma de investimento, padres enviavam caixas de vinho para serem trocadas por escravos na África. Segundo o historiador Maximiliano Menz, pelo padrão religioso da época, o tráfico de escravos era uma forma de salvar almas do inferno porque os negros recebiam o batismo antes de entrarem nos navios rumo ao Brasil.
A partir do século XIX, os ingleses iniciam campanha para o fim do tráfico negreiro no mundo, sendo William Wilberforce, um dos líderes do movimento no parlamento. Vale lembrar que, a escravidão vem das mais velhas tradições orais, praticada em todo continente europeu desde a mais remota antiguidade, bem como no continente africano.
Com a pressão britânica, o Brasil aprovou leis contra o tráfico, como a Lei Feijó de 1831, mas que ficaram conhecidas como leis só para inglês ver, pois os navios tumbeiros não arriaram velas. Como exemplo, a biografia do africano Mahommah Baquaqua, que cruzou o Atlântico Sul, chegando a Pernambuco em 1845, sendo o único escravo negro do Brasil a publicar um livro, sendo um relato de barbárie. Neste período, quem fosse a Angola e quisesse presentear a um amigo na volta, traria como lembrança de viagem um escravo africano, mimo recebido com satisfação.
O Brasil deu fim à escravidão somente em 1888, sendo ao lado de Cuba, um dos últimos países do mundo a abolir o trabalho servil. A liberdade para o negro veio igualmente cruel ao cativeiro. Expulso da fazenda, logo percebeu que a cidade também não era o seu lugar.
Apesar de muitos livros onde o tema é a escravidão e a exploração: Os Sertões; Casa Grande e Senzala; Grande Sertão: Veredas; Vidas Secas; Macunaíma; Escrava Isaura, o brasileiro não percebeu o estrago histórico feito por esse regime na cultura do país, preconizado pelo viajante francês Auguste de Saint-Hilaire, no seu livro Viagem às nascentes do Rio São Francisco e pela província de Goiás. Usamos erradamente a escravidão como álibi para justificar o atraso, a pobreza, a criminalidade. Ainda hoje, muitos empresários e dominantes no Brasil acham que a escravidão é uma instituição natural, baseada no fato de que alguém nasceu para ser escravo ou por ser pobre deve ser explorado.
Embora o nosso Código Penal, no artigo 149, se refira ao crime de reduzir alguém a condição análoga à de escravo e defina o que é trabalho forçado, jornada exaustiva, servidão por dívida e condições degradantes de trabalho, o governo brasileiro tira anualmente dos empregados através de impostos, cinco meses de salários, sem dar em troca principalmente educação de qualidade, conservando assim, o grande desnível social que se criou desde a América portuguesa, e que torna os programas sociais um grande engodo.
No seu importante livro Degradância Decodificada (Fortaleza, 2015), o engenheiro mecânico e auditor fiscal do trabalho Benedito Lima, Bené para os parnaibanos, aponta que as denúncias de trabalho análogo ao de escravo colhidas e fiscalizadas pelo GEFM (Grupo Especial de Fiscalização Móvel – Ministério do Trabalho e Emprego) ao Longo dos últimos anos têm demonstrado que, inexplicavelmente, elas são oriundas tanto de empresas de pequeno porte (pequenos fazendeiros) que utilizam pouca tecnologia como de grandes grupos econômicos do Brasil; em alguns casos, até de empresas multinacionais que empregam alta tecnologia.
O trabalhador brasileiro continua como os índios do século XVI, fazendo várias tarefas, recebendo pouco, e lesado através de um conjunto de leis só para inglês ver. Apesar de ser a oitava economia mundial, o Brasil registra uma grande desigualdade racial e social. Empresas com trabalhadores sem carteira assinada fazem suas próprias leis, sempre em detrimento da saúde e renda dos empregados. Nos certificados internacionais de Qualidade Total, as empresas cuidam igualmente do bem-estar e satisfação de clientes e empregados. O trabalhador brasileiro precisa de serviço que não seja carregar madeira e salário que não seja quinquilharia. Como anotou Renato Russo/Legião Urbana, nos deram espelhos e vimos um mundo doente.