ENSINO A DISTÂNCIA NA PANDEMIA II
Vitor de Athayde Couto
A pandemia impede o adolescente de brincar com a galera. Nem de máscara! O estresse familiar e as cobranças da escola levam o pequeno Kaká ao desespero.
– Kakááá! Qual foi o combinado? Rum! Televisão, só depois de fazer o dever! – disse a mãe, enquanto prepara o café da manhã, que tem tudo, menos café.
– Mãe, o que é dever?
– Ops! Desculpe, Kaká. Isso era no meu tempo. Agora, não. Criança não tem dever. Tem atividade, né? Lembre-se que a atividade de hoje é sobre as sete maravilhas do mundo antigo.
O menino nem sabe se escutou. E, se escutou, não sabe se ouviu. Se ouviu, não sabe se entendeu. Se entendeu, não sabe se compreendeu… E assim fica estruturada a cadeia improdutiva do desconhecimento contemporâneo. Por causa da pandemia, Kaká não vê nenhuma maravilha neste mundo, quanto mais sete. A mãe pensa: “preciso levar esse menino a uma psicopedagoga”. Mesmo sem saber o que é psicopedagogia.
Quando vê o neto de máscara, a avó regride no tempo. Aliás, bom tempo aquele em que menino só usava máscara para brincar de mocinho e bandido. Na falta de efeitos especiais, o caubói tinha que ter pontaria de verdade.
A cada minuto Kaká olha para o relógio na parede. Faltam três horas… faltam duas horas e 59 minutos… Ele sabe que uma sessão de ensino a distância (EAD) demora muito mais tempo do que para “preparar” um miojo. Por falar em miojo, Kaká vive refletindo sobre aqueles saquinhos de sabores que acompanham cada pacote. Como ninguém usa aquilo, quase todos os saquinhos são jogados no lixo, com as respectivas embalagens laminadas. Seriam quantos milhões por dia? Ninguém nunca teve a ideia de vender miojo sem aqueles saquinhos? – Kaká se pergunta.
Inteligente, acima da média, ele sempre reflete em torno de questões pouco ortodoxas. Daí, começa a fazer contas. O seu ponto de partida são as estatísticas sobre a população mundial.
– Kaká, liga a câmera! – gritou a mãe ao perceber que ele não larga o celular.
A avó tinha acabado de ouvir no rádio uma notícia sobre “educação”. Na verdade, a notícia era sobre escolaridade. Mais especificamente, sobre o ensino nas escolas. O locutor, muito entusiasmado, afirmava que a pandemia proporcionou uma grande revolução no ensino. Graças às novas tecnologias da informação (TI)! – afirmava, como quem transmite um gol no último minuto do segundo tempo da final de mais um campeonato.
O principal assunto no rádio era a respeito de um… como é que se diz… um iutúber… um influêncer… sei lá… que está fazendo muito sucesso na revolução do ensino. Fazer sucesso significa ter milhões de seguidores. Ser seguidor significa ter muito tempo ocioso para dedicar ao seguido.
Pois bem (vovós sempre começam frases com “pois bens”), o locutor afirmava que o atual sistema de ensino e os professores estão defasados. Não atraem mais o interesse das crianças e adolescentes, etc.
O iutúber/influêncer (II), que ganha muito dinheiro, demonstra “cientificamente” que professores pobres não dispõem do tempo mínimo necessário para preparar boas aulas. Ele, por exemplo, leva meses para produzir um vídeo de boa qualidade.
Kaká está louco para terminar a aula de EAD e assistir ao vídeo do II sobre as sete maravilhas do mundo, e fazer sua atividade rapidinho. Do alto da sua grana, o II está animado. Demonstra muita segurança e profundo conhecimento nos vídeos que apresenta.
Termina a aula. Enquanto merenda uns troços embalados num saco laminado, Kaká localiza o vídeo em que o II trata das sete maravilhas do mundo.
Embora seja muito inteligente, Kaká não percebe que o II está lendo no teleponto (teleprompter, em inglês, pra variar). Não se sabe se é ele mesmo quem redige e edita o teleponto. Tampouco se eventuais erros são de redação ou de leitura. Mas a vovó, que é uma velha e pobre professora aposentada, ouviu o vídeo sem querer, e percebeu quando o II referia-se a uma das sete maravilhas do mundo antigo, que ele chamou de “Faraó de Alexandria”.
***
– Ê, faraó, ó, ó. – pensou a velha e pobre professora aposentada, lembrando de antigos carnavais sem camarotes e cordeiros. Tentou conversar com o neto sobre a qualidade do vídeo do II, mas Kaká não tinha tempo. Já pulava do Free Fire para o Minecraft. Bem, pelo menos a mãe bota fé na psicopedagoga. Um dia, quem sabe…