No dia 27 de março o Presidente da República afirmou na entrada do Palácio da Alvorada, para alguns apoiadores e diversos repórteres, o seguinte:

“Ó, tem um artigo na CLT que diz que todo empresário, comerciante etc. que for obrigado a fechar seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo, os encargos trabalhistas quem paga é o governador e o prefeito. Tá ok? […]”

Naquela ocasião, o Presidente da República parecia advertir governadores e prefeitos quanto à responsabilidade pelos encargos trabalhistas decorrentes das rescisões contratuais ocorridas durante o período em que as empresas estivessem de portas fechadas, por força do isolamento social decretado pelo chefe do executivo.

A partir daí o assunto ganhou destaque na imprensa, gerando discussão quanto ao alcance e aplicabilidade do artigo 486 da CLT, nesta época de pandemia.

Diz o mencionado dispositivo legal:

Art. 486 CLT. No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.

Enfim, no caso de factum principis, ou seja, paralisação do trabalho motivada por ato de autoridade pública ou pela promulgação de uma norma que impossibilite a continuação da atividade empresarial, o pagamento da indenização trabalhista ficará a cargo do governo responsável.

Numa primeira leitura, neste período de quarentena e de fechamento do comércio por força de decreto estadual ou municipal, pode parecer que as empresas estejam isentas de pagar qualquer quantia nas rescisões trabalhistas. Porém, é importante analisar o artigo 486 da CLT detidamente, com a devida cautela, para evitar problemas futuros.

Na sua redação, o citado dispositivo legal somente se refere ao “pagamento da indenização”, e o jurista Maurício Godinho Delgado esclarece que a leitura desta regra jurídica “tem de ser restrita, jamais ampliativa, como pertinente à interpretação em todo o Direito do Trabalho”.

A jurista Vólia Bomfim Cassar, em seu livro ‘Direito do Trabalho’, embora reconhecendo que há divergências, defende que “o art. 486 da CLT transferiu para a autoridade interveniente apenas a responsabilidade pela indenização adicional do FGTS”.

Da mesma forma, “Valentin Carrion, Maurício Godinho e Gabriel Saad (posição majoritária) defendem que a responsabilidade da autoridade que extinguiu a empresa está limitada à indenização por tempo de serviço por contrato indeterminado (atualmente corresponde à indenização adicional sobre o FGTS, isto é, aos 40%) ou por contrato determinado (art. 479 da CLT)”.

Assim, é importante o empresário agir com cautela, porquanto a ocorrência do factum principis pode não o isentar de pagar encargos trabalhistas devidos por ocasião da rescisão trabalhista. Sérgio Pinto Martins, ao explicar o factum principis, adverte que “as verbas rescisórias ficarão por conta da empresa […]”

Afora esta controvérsia em relação ao devido pela empresa na rescisão, há discussões quanto à própria aplicabilidade do artigo 486 neste contexto histórico de pandemia.

O advogado Luiz Fernando de Quevedo, no artigo ‘A contenção ao coronavírus e o factum principis no direito do trabalho’, publicado na Revista Consultor Jurídico aos 04.04.2020, destaca que “a caracterização do fato do príncipe no Direito do Trabalho, nos termos do art. 486, CLT, pressupõe o encerramento da atividade como consequência da paralisação que teve como causa direta o ato de autoridade”.

Sérgio Pinto Martins leciona, em seu livro Direito do Trabalho, que “o factum principis é causado pela Administração Pública, provocando o encerramento da empresa e a dispensa dos seus empregados”.

Vê-se, portanto, que, na interpretação de alguns juristas, o encerramento da atividade é elemento caracterizador da ocorrência do factum principis. O professor e Juiz Rodrigo Garcia Schwarz, comentando o artigo 486 da CLT, alerta que “não se caracteriza o factum principis se a ordem ou a medida governamental tornar, apenas, mais onerosa ou mais difícil a execução do contrato, não a impossibilitando […]”, e ressalta, ainda, que o factum principis somente restará caracterizado “se a paralisação não decorrer de superior interesse público, ponderados os riscos ordinários da atividade econômica, assumidos pelo empregador”.

Rodrigo Trindade e César Pritisch, no artigo ‘Força Maior e Factum Principis – Responsabilidade nas Paralisações do Covid-19’, disponível no site paginasdedireito.com.br, ao abordar sobre o Fato do Príncipe afirma que “tal ato estatal, no entanto, deve decorrer de escolha discricionária do Administrador, em juízo de conveniência e oportunidade (escolhe desapropriar este ou aquele imóvel, escolhe construir um viaduto inviabilizando o comércio neste ou naquele local)”. E arremata:

“Não é o caso quando ocorre uma situação de força maior em sentido estrito (como uma guerra, ou bloqueios nas estradas com risco de desabastecimento), ou de catástrofes naturais (como um tsunami ou uma pandemia severa, como a atual). Aqui, embora o ato estatal seja o agente imediato do prejuízo empresarial, o verdadeiro nexo causal se dá com a catástrofe de causa humana ou natural, estando a Administração, tanto quanto a própria empresa, compelida a agir rapidamente para preservar a vida dos empregados e demais cidadãos. A ordem estatal de cessação ou diminuição das atividades é apenas consequência prática da catástrofe em tela, não um fato da Administração ou ‘factum principis’ ”.

O factum principis traz ainda questionamentos de ordem processual, em vista da escassa jurisprudência sobre o tema, além disso, a depender da interpretação, pode até não ser a medida mais econômica para o empregador, nas rescisões trabalhistas, durante este momento pandêmico.

O certo é que demissão é medida extrema, antissocial, que gera custo imediato e problemas futuros para as empresas, principalmente por se desfalcarem de seus empregados experientes. Neste momento de dificuldades, exaltando-se a função social das empresas, o ideal é que através de negociação, sobretudo com adesão às regras previstas nas medidas provisórias ns. 927 e 936, possa se garantir a continuidade das atividades laborais e empresariais, preservando-se os empregos, ainda que com sacrifício. É hora de ser solidário, dialogar, unir esforços, lembrando que “cuidar do outro” é o lema da Campanha da Fraternidade de 2020.