Conforme preleciona Paulo Lôbo, “a família sofreu mudanças de função, natureza, composição e, consequentemente, de concepção, sobretudo após o advento do Estado social, ao longo do século XX”.
Sobre estas mudanças, Moacir César Pena Junior destaca em especial “aquelas que dizem respeito às novas formas de constituição” das famílias.
De fato, no dizer de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald “é inegável que a multiplicidade e variedade de fatores (de diversas matizes) não permitem fixar um modelo familiar uniforme”. Por isso, “sobreleva, assim, perceber que as estruturas familiares são guiadas por diferentes modelos, variantes nas perspectivas espaço-temporal”.
Rodrigo da Cunha Pereira também considera que “a partir do momento em que a família deixou de ser o núcleo econômico e de reprodução para ser o espaço do afeto e do amor, surgiram novas e várias representações sociais para ela”.
De propósito, transcrevo posicionamentos de respeitáveis doutrinadores para demonstrar que no moderno Direito de Família o pensamento prevalecente é o de que a família não é um fenômeno estático, imutável, constituída de um modelo único. Não existe somente um tipo de entidade familiar.
O casamento, por exemplo, já foi o único modo legítimo de constituição da família no Brasil, mas, como leciona Moacir César Pena Junior, atualmente se reconhece que “qualquer outra forma de representação social da família que tenha no afeto o seu fundamento maior, pode levar pessoas, da mesma forma que o casamento, ao encontro com a plena comunhão de vida e com a felicidade”.
Nesse diapasão, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho afirmam que “a ordem constitucional vigente consagrou uma estrutura paradigmática aberta, calcada no princípio da afetividade, visando a permitir, ainda que de forma implícita, o reconhecimento de outros ninhos ou arranjos familiares socialmente construídos”.
Pois bem, o fato é que são várias as entidades familiares, abrangidas pelo conceito aberto e indeterminado de família, todas elas gozando da proteção do estado, em iguais condições, diante do princípio da isonomia de tratamento assegurado pela Constituição Federal.
Moacir César Pena Junior diz que “a família brasileira atual, solidária e pluralista, destaca-se pela diversidade na sua formação: casamento, união estável, união homoafetiva, família mosaico, família unitária, família monoparental, família anaparental, família multiespécie, família poliafetiva, irmandades, inseminação artificial, entre outros, estão entre as novas formas de representação social da família”.
Dentre estas formas, destaco para fins deste artigo, a família multiespécie, ainda pouco estudada, mas com uma enorme tendência a ser aceita cientificamente pela comunidade jurídica, por tratar-se de uma realidade social consagrada. Nesse novo modelo de família estão incluídos os animais de estimação, por serem dóceis, afetivos, fiéis companheiros e participarem efetivamente da vida cotidiana no âmbito do lar.
É fato que com os animais mantemos fortes laços de afetividade. Não escondo de ninguém que na minha casa eles fazem parte do contexto familiar e são tratados condignamente, interagindo e se comunicando à sua maneira, inclusive influenciando, para melhor, na rotina da casa. Tem carteiras de vacinação atualizada, arquivos de fotos, aniversários comemorados, portanto, estão inseridos numa perfeita convivência com os demais membros da família.
Erra quem se expressa como sendo “dono” de um animal de estimação. Eles não são meros objetos, não são inanimados, até porque expressam sentimentos. Coisificá-lo seria violar sua dignidade. Deles não se detém a propriedade, mas a guarda! Não há uma simples posse, mas convivência!
Em 2016, num processo em que um casal separado discutia “a posse e propriedade” de uma cadela, o juiz, Leandro Katscharowski Aguiar, titular da 7ª Vara Cível de Joinville (SC), remeteu os autos à Vara de Família, por considerá-la competente e na esperança de que o caso fosse julgado com sensibilidade, “quem sabe, se valendo da concepção, ainda restrita ao campo acadêmico, mas que timidamente começa a aparecer na jurisprudência, que considera os animais, em especial mamíferos e aves, seres sencientes, dotados de certa consciência”.
Em caso semelhante, a 22ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu conceder à mulher a guarda do cachorro, assegurando, no entanto, ao ex-companheiro o direito de tê-lo em finais de semana alternados. “Não custa dizer que há animais que compõem efetivamente a família de seus donos, a ponto da sua perda ser extremamente penosa”, ponderou o Desembargador Relator, ao fundamentar a decisão.
Em 2007, numa Vara de Família no Rio Grande do Sul, a magistrada, após deixar expresso na audiência de conciliação que “cachorro é como filho, tem-se que cuidar pelo resto da vida”, decidiu, após análise da situação fática, condenar o varão à prestação de alimentos in natura aos animais (dois cães de caça): “30 quilos mensais de ração canina de boa qualidade “.
Segundo reportagem do Uol Notícia, datada de 05.07.2013, a 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo condenou o ex-marido a pagar R$ 500,00 à ex-mulher, a título de ajuda de custo até a morte dos animais (dois cachorros).
A família multiespécie já é objeto de estudo pela psicologia há muito tempo. A Psicóloga Ceres Berger Faraco escreveu sua tese de doutorado em Psicologia sobre a “interação Humano-Cão: o social constituído pela relação interespécie” na qual aborda a convivência respeitosa. Para esta psicóloga, ex-presidente da Associação Médico-Veterinária de Bem-Estar Animal, “é impossível pensar em família atualmente sem considerar a interação humano-animal”.
Portanto, a família multiespécie já é uma realidade, merece a proteção do Estado e o reconhecimento de todos os operadores do Direito, da mesma forma que precisamos respeitar os animais como seres sencientes, (dotados de limitada consciência), inclusive elaborando legislação que os reconheça como tal e assegure-os maior proteção jurídica.
Por Roberto Cajubá da Costa Britto | Advogado. Professor Universitário. Mestre em Ordem Jurídica Constitucional.