O  CABOTINO

Alcenor Candeira Filho

 

No Dicionário Aurélio Século XXI, este verbete:

“Cabotino  [Do fr. cabotin ]. S. m. 1. Cômico ambu-

lante. 2. Mau comediante. 3. Fig.  Indivíduo presu-

mido,  de maneiras afetadas, que procura chamar a

atenção, ostentando qualidades reais ou fictícias.”

 

Como ensina o dicionário, o termo cabotino se aplica tanto ao medíocre quanto ao talentoso, caindo bem na carapuça do “general da banda iê iê” e na do “pavão misterioso, pássaro formoso”. Ambos podem até ter  tutano mas não coturno para entender que “maior é a girafa porque tem o pescoço grande”.

O cabotino padece do pesadelo da falta do reconhecimento geral com que sonha na insânia da insônia. Seu ego é maior que o ego do cego que enxerga além da luz do fim do túnel. É o mitificador ou mistificador capaz de exaltar algumas pessoas com altissonantes brados hiperbólicos e de ignorar outras com a imperial mudez da indiferença. É  um solitário solidário só na reciprocidade: eu te elogio, tu me elogias e nós nos elogiamos.

Essa categoria está sempre (re)unida e se compraz em apelidar ou xingar  de “gênio” quem é do mesmo time. Entre críticos maldosos fala-se até em rusgas entre “baixo clero” e “alto clero”. O certo é que de clero em clero, de lero em lero e de bolero em bolero o cabotino vai atapetando os marmóreos degraus que poderão conduzi-lo ao topo da montanha.

Na sua firme e permanente vontade de aparecer, esse príncipe do exibicionismo balofo está presente em todos os palcos, ora como rei, ora como servo. Em qualquer situação, não passa daquele “bicão” a que me referi em entrevista concedida aos escritores Elmar Carvalho e Domingos Bezerra, publicada na revista “Cadernos de Teresina”:

 

“ –  O que você tem a dizer sobre os bicões literá-

rios?

–  Acho que são muitos e às suas altissonantes

trombetadas só os incautos batem continência.

Felizmente.”

 

A preocupação com os bicões esteve presente nas seis edições do Salão do Livro de Parnaíba – SALIPA, com primeira edição em 2009 e última em 2015. Homenageados em cada ano:

– Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva

– Humberto de Campos Veras

– Renato Pires Castelo Branco

– Evandro Lins e Silva

– Francisco de Assis Almeida Brasil

– Leonardo de Nossa Senhora das Dores Castelo Branco

 

Os organizadores do evento primavam pelo rigor na escolha dos palestrantes. Se a peneira não era infalível pelo menos tinha poucos buracos. O rigor seletivo era ainda maior na escolha do homenageado em cada ano.

Para evitar a pressão de indivíduos interessados apenas na promoção pessoal ou familiar, adotou-se inicialmente um critério suscetível de neutralizar nefastas contaminações: o homenageado seria sempre pessoa falecida, preferencialmente parnaibana, com livro de reconhecido valor artístico, científico ou filosófico. Essa regra só foi quebrada em 2014, quando com inteira justiça se homenageou um dos maiores escritores vivos do país: Assis Brasil.

O reconhecimento do próprio valor e do de terceiros é inerente ao ser humano e faz muito bem à alma de todos.

O problema surge  a partir da obsessão da própria estátua, quando a pessoa perde o senso do ridículo, a ponto de não enxergar que “a estátua é sempre maior que o original”, como ensina Virgínia Woolf.

Essa obsessão é analisada e ridicularizada na literatura universal. Um só exemplo, extraído do primeiro capítulo do romance “O Ateneu”, de Raul Pompéia, ao retratar o dr. Aristarco, diretor de famosa escola, que “enchia o Império com o seu renome de pedagogo”:

 

“Nas ocasiões de aparato é que se podia

tomar o pulso ao homem. Não só as condeco-

rações gritavam-lhe do peito como uma couraça

de grilos: Ateneu! Ateneu! Aristarco todo era um

anúncio. Os gestos, calmos, soberanos, eram de

um rei  –  o autocrata excelso dos silabários. (…)

Em suma, um personagem que ao primeiro exa-

me, produzia-nos a impressão  de um enfermo,

desta enfermidade atroz e estranha: a obsessão

da própria estátua.”

 

Finalmente, é bom desconfiar também do cabotino às avessas, do espertalhão travestido de modesto, que à elegância do paletó e gravata prefere a simplicidade de sandálias e vestes surradas. Parafraseando Eça de Queirós, qualquer que seja “o manto diáfano da fantasia”  usado para esconder “a nudez  forte da verdade”  –  o que todos querem mesmo na fogueira das vaidades  é ouvir o eco oco do elogio retumbante ecoando além do pipocar de foguetes e palmas.