SEXTA MALDIÇÃO: O INCÊNDIO

 

Vitor de Athayde Couto

Enquanto bebiam água, ops, enquanto se hidratavam haha, Miguel afastou-se e foi até a estátua. Novamente voltou correndo, assustado.

– Que foi, Miguel? – perguntaram todos.

– A estátua, vovó! Eu juro, desta vez ela abriu os olhos!

– Calma, Miguel, respire fundo trinta e três vezes! – disse a vovó.

– Não posso, eu preciso contar logo – arf, arf (como nos quadrinhos).

– Pois conte, meu filho, conte aqui pra sua vovó.

– Os olhos…

– O que têm os olhos? – perguntou Estefânia. – Anda logo, desembucha, Miguel!

– Os olhos da estátua continuam brancos, mas…

– Mas, o quê? – insistiu a irmã, já nervosa.

– Desta vez eu vi sangue, muito sangue.

– Sangue? Onde, meu filho?

– Nos olhos, vovó! Sangue nos olhos, como se a estátua estivesse com ódio!

– Tá bom, tá bom. Agora, tenha calma, sente-se aí. Vou contar uma história, uma história muito antiga, do tempo em que, no lugar desta praça, só havia areia. Parecia um pedaço de deserto, onde o mato só nascia na estação das águas, quando chovia muito. A chuva grossa arrastava tanta areia até o rio que, no início da construção desta praça, há quase três séculos, foram necessárias mais de mil carroçadas de areia trazida de volta do rio.

– Eita, vovó! Lembrei das aulas de História. Parece que o comportamento da humanidade se resume a um eterno construir-destruir-construir-destruir…

– Isso mesmo, Margarida. É o chamado ciclo do eterno retorno, onde o novo é apenas o velho esquecido. Destruir é a única forma de inovar. Mas nem sempre o novo é melhor do que o velho. Aliás, pode até ser melhor, mas depende para quem. Toda destruição, seguida de uma reconstrução, é sempre uma forma de alguém ganhar mais dinheiro. Quem ganha, dirá sempre que o novo é melhor.

– E os que perdem, vovó? – perguntou Miguel, já quase esquecido do ódio, ops, do sangue nos olhos da estátua.

– Os que perdem ficam calados e nunca fazem nada. Mas há exceções. Percebendo que ia perder a praça, a população revoltou-se e começou a se mobilizar. Receoso, o prefeito mandou cercar a praça com tapumes de madeira para que os passantes não pudessem ver a destruição do patrimônio histórico-cultural da cidade. Afinal, eram trabalhadores e outras pessoas que tinham crescido na praça, nas férias e nos passeios de domingo. O guarda, o pipoqueiro, o bombonzeiro, os engraxates, os colecionadores de acetatos de filmes, estampas e figurinhas que tinham um valor extraordinário para qualquer criança, mais até do que um celular com seus milhares de jogos. Porque havia mais emoção, como havia emoção no coração dos velhos aposentados que jogavam damas, abraçando cada uma delas ao som de valsas imaginárias. Adeus bicicletas de aluguel, caixinhas de engraxates falantes e bem-humorados, iôi o pirulito amassado no penico, enfiado no palito. Adeus sorvete-vete-vete, picolé-doce-gelado do pau carimbado, com prêmios que se resumiam a outro e mais outro picolé, com sabores artificiais de frutas misteriosas que nunca dão por aqui. Adeus culumins comedores de oitis, trocadores de revistas em quadrinhos, objetos de desejo. Adeus carrinhos de rolimã, cicatrizes e perebas. Adeus saúde!

– Puxa, vó, quanta riqueza havia na praça! – admirou-se Miguel.

– Sim, meu netinho, tudo se acabou, menos a coragem. Foi num lindo dia de Sol, quando o calor e o vento estavam favoráveis a uma queimada, um grupo de estudantes tocou fogo nos tapumes, gritando sem parar: “Queremos nossa praça! Queremos nossa praça!”. O fogo e o barulho chamaram a atenção do povo que aderiu aos gritos, em defesa da praça, mas já era tarde demais.

– Por quê, vovó? – perguntaram todos, curiosos.

– Quando os tapumes caíram e viraram cinza, o povo olhou o interior da praça, na esperança de avistar o coreto, a pérgula, os postes; porém, já não restava mais nada. Tudo havia sido demolido ou roubado. Só os pardais resistiam firmes nos oitizeiros para proteger os filhotes que ainda não podiam voar.

– Como se não bastassem as corujas malvadas que comiam os filhotes, né vovó?

– Sim, Estefânia. Então, por falar em corujas…

(Continua na próxima sexta-feira)

__________________________________________________________________

Ouça o áudio com a narração do autor:

***

Caro leitor, tu também poderás ouvir este e outros textos, assistindo aos vídeos no canal YouTube do autor. Basta clicares aqui.