Camila rompeu com os pais bolsonaristas no 1º turno, depois de o convívio ficar “sufocante”. Sua mãe sente “perda” com a decisão, e o pai aponta “egoísmo”. Em comum, todos veem o outro como manipulados pela internet.O resultado do primeiro turno deixou muitos em choque pelo Brasil. Partidários da esquerda têm dificuldade em aceitar que Jair Bolsonaro (PL), após quatro anos de governo, recebeu 43,2% dos votos e venceu nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. E apoiadores do presidente de extrema direita custam a crer que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ficou na frente na contagem total e segue favorito para ganhar no segundo turno.
Com cada grupo consumindo informações de sua bolha, a imagem complexa do país que surge refletida no espelho da urna acaba parecendo desagradável a todos.
Sentimentos parecidos têm aflorado nas famílias. Pais que não conseguem entender a opção política divergente dos filhos, após tantos anos de dedicação e esforço na sua criação. Filhos decepcionados com o voto dos pais em alguém que abominam, e que decidem reduzir o contato para evitar uma piora ainda maior na relação.
Relatos do tipo aparecem em consultórios de psicólogos, e expõem os limites da idealização do amor e a dificuldade de manter o diálogo com o divergente, em meio a uma dinâmica política que mobiliza o extremismo e afetos como o ódio.
Uma família rachada…
Essa é a situação de Camila*, 35 anos, que trabalha no setor de comunicação de uma organização do terceiro setor no Rio de Janeiro, e seus pais Helena*, 62 anos, e José*, 66 anos, empresários autônomos no interior de São Paulo.
Filha e pais estão rompidos desde o primeiro turno, e conversaram separadamente com a DW sob a condição de terem seus nomes verdadeiros preservados.
Camila narra crescente “decepção” com a escolha política dos pais, que costumavam votar em candidatos do PSDB, mas em 2018 fizeram campanha e votaram em Bolsonaro.
Ela foi pega de supresa pela escolha dos pais na eleição passada, e em seguida mergulhou em um processo de “reconhecimento” do conservadorismo deles – rememorando relatos de saudades do regime militar ou a forma “machista” como seu pai criticava a então presidente Dilma Rousseff.
Após a vitória de Bolsonaro, Camila relata que seus pais ficaram cada vez mais “autorizados” a serem “abertamente racistas”, e seu pai “entrou numa onda de arma” e passou a reproduzir a “cartilha bolsonarista” que circula em grupos de WhatsApp.
“Você vai notando os detalhes e a coisa vai ficando cada vez mais sufocante. Veio um distanciamento, uma vontade de não querer estar perto”, diz ela, que identifica hoje em seus pais elementos do discurso fascista.
No dia do primeiro turno, sua mãe enviou um conteúdo bolsonarista para o grupo de WhatsApp da família. Camila o considerou ofensivo, deixou o grupo e bloqueou novas mensagens que chegassem de seus pais, “em favor da saúde mental e de tentar preservar alguma coisa dessa relação”.
Desde então, eles se reencontraram uma vez numa festa familiar, mas praticamente não houve conversa – “um clima ruim, ninguém gosta de estar brigado com a mãe”. “Meu pai me ligou ontem [terça] e não atendi, não tenho a menor vontade”, diz. “Entendo que, apesar de tudo, a vida é maior que isso, e não sei se sustentaria romper relações totalmente com eles. Mas é um afastamento que dificilmente irá embora”, afirma Camila.
“No fundo, a gente quer gostar da nossa família, ver nossos pais como pessoas decentes, às quais temos agradecimento por tudo o que fizeram, e respeitar as diferenças – mas dentro de um certo limite. Tem coisas que são inaceitáveis. Bolsonarismo é inaceitável.”
Ela segue falando raramente com a mãe, mas somente por ligações telefônicas, pois dessa forma “você pensa mais, não fica encaminhando lixo de Bolsonaro”.
“Sentimento de perda”
Helena, mãe de Camila, define-se como uma pessoa de direita e diz que nunca se fechou ao diálogo com o diferente. Ela atribui a decisão da filha de sair do grupo da família e bloqueá-la a uma “orientação” que segundo ela circularia entre grupos de esquerda para que eles se mantenham isolados, convivendo somente com quem pensa de forma semelhante.
“Eles estão orientados a ficar entre eles (…) inclusive para não sofrerem pressão ou para que alguém não mude de ideia. Olha como se domina melhor um povo. Eles se trancam, ninguém entra e ninguém sai. Assim eles não correm risco, mas desmancham inclusive o meio familiar, que para mim é sagrado”, diz.
Assim como Camila relata certa surpresa no momento em que descobriu o bolsonarismo de seus pais, Helena diz não compreender por que ela e a sua outra filha “saíram” de esquerda.
“Elas viveram uma vida de quem sempre trabalhou pela direita, sempre fomos profissionais liberais que lutaram, nunca dependemos do governo. Foram criadas em berço esplêndido, para depois sair desse jeito. Tenho visto em muitas famílias o mesmo caso”, diz.
Ao começar a analisar o rompimento, Helena soa firme e diz que quem perderá mais com essa situação é a filha, que ficará sem a oportunidade “de participar de coisas bacanas da família, de ganhar amor que a gente incondicionalmente sempre tem”.
Mas, em seguida, emociona-se e vê nesse desfecho uma suposta falta de amor de Camila pelos pais, que provoca nela “dor” e “sentimento de perda”.
“Meu sentimento é de incapacidade da minha parte. Me sinto frustrada por não ter conseguido criar uma filha que conseguisse enxergar as coisas de modo mais amplo. Você não pode excluir da sua vida pessoas que pensam diferente. Quando você ama, você discorda, mas aceita.”
José, pai de Camila, diz que sempre deu liberdade para a filha viajar e estudar onde quisesse, e que é natural que as pessoas tenham seu próprio discernimento. Contudo, vê nela um “desvio de interpretação” devido a “influências externas”.
“Principalmente nas universidades. Tudo o que esse governo dos últimos 40 anos implantou nas universidades é uma educação com viés muito mais de esquerda do que de direita”, afirma.
Ele diz ter boas memórias da época do regime militar, quando estudava e “as escolas eram maravilhosas”, e que os jovens de hoje receberam “informações erradas por muito tempo, que eram mentiras e acabaram se tornando verdade”.
Nessa guerra de versões, José define a decisão da filha de cortar a comunicação como individualista. “Você ter isso na sua cabeça e não aceitar o que o outro tem, é um pouco egoísta”, diz. Mas nutre esperança que a crise familiar serene após as eleições.
Idealizações em xeque
A psicóloga e psicanalista Marina Rachel Graminha-Cury diz ter notado na sua prática profissional muitos rompimentos de pessoas na faixa dos 20 e 30 anos, de perfil progressista, com pais de meia-idade ou idosos de perfil conservador.
Ela identifica uma dinâmica comum nesses casos. Do lado dos filhos, há desconforto de ter que tirar os pais de um lugar “idealizado” ao descobrir que eles apoiam Bolsonaro, e romperem com um ideal de paz, “que a gente tem como ideal de amor”.
“Esses filhos se perguntam: Como alguém que me deu tanto amor pode reproduzir um discurso de ódio?”, diz Graminha-Cury, remetendo à forma como essas pessoas encaram a narrativa bolsonarista.
Do lado dos pais, também há decepção. Eles se perguntam: “Se meu filho fala que eu sou tudo isso, ele não me respeita. Criei esse menino errado. Se ele não me respeita, ele não me ama.”
Graminha-Cury pontua que não existe amor incondicional, mesmo nas famílias, e que a divergência política extrema confronta as pessoas com a percepção de que o amor “não é garantido”, mas depende de constante escolha.
Como Camila, ela também identifica no campo bolsonarista uma reprodução de elementos do discurso fascista, por meio de redes sociais e aplicativos de mensagem, elaborado de forma a mobilizar afetos e o ódio. “De repente, pessoas que estão na nossa vida arrumaram um inimigo em comum, que é o ‘comunismo’, o PT. E escolhem reproduzir esse ódio”, diz.
Mesmo assim, Graminha-Cury destaca que o inconsciente humano não é “binário, preto no branco”, que todos os indivíduos têm contradições e que, em muitos casos, ela não encara os eleitores de Bolsonaro como fascistas, mas como pessoas que estão reproduzindo partes dessa narrativa por motivos variados.
“Não se trata de desresponsabilizar as pessoas que escolhem reproduzir esse discurso. Mas há uma parte delas que também é possível de amar, estabelecendo novos pactos”, diz, como deixar a política de lado.
Graminha-Cury – ela mesma neta de uma italiana “racista”, cujo pai era apoiador do ditador Benito Mussolini, mas representou uma figura familiar crucial e de amor – diz que o esforço para manter canais afetivos abertos pode ser uma estratégia para fazer frente ao próprio discurso fascista, que se utiliza do mecanismo de pensamento binário.
“É aí onde o fascismo ganha, porque ele fala que todo o problema está no ‘comunismo’, e que se alguém apóia o ‘comunismo’, logo ele irá destruir a família, a Igreja e a pátria. Se a gente entrar no mesmo pensamento binário, vai entrar na mesma estrutura de pensamento fascista. Quanto mais conseguirmos ver que as pessoas são complexas, mais conseguimos lidar com isso. Senão entra no ‘ou eles ou nós’, e aí não tem relação humana possível, porque ninguém é assim”, diz.
Ela ressalva que, em alguns casos, o rompimento se justifica, especialmente quando os pais já apresentavam relações autoritárias ou abusivas com os filhos e a ascensão de Bolsonaro “escancarou” esses comportamentos. “Aí a eleição é a gota d’água de um processo maior.”
Fonte: Bruno Lupion | TV CULTURA