A convivência familiar, como o próprio nome indica, pressupõe companhia

No início de maio repercutiu em toda a imprensa a decisão do STJ de condenar um pai a indenizar em R$ 200 mil a filha por “abandono afetivo”.

A ministra Nancy Andrighi, da Terceira Turma do STJ, Relatora do Acórdão, entendeu ser plenamente possível exigir indenização dos pais em razão do abandono afetivo para com os filhos. E arrematou: “não existem restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar, no Direito de Família”.

O argumento mais forte da douta Relatora, e que mais causou repercussão, está resumido na seguinte frase: “amar é faculdade, cuidar é dever”. Para a Ministra “não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos”.

A decisão é inédita no STJ, no entanto a responsabilidade civil no âmbito das relações familiares já é defendida há algum tempo por parte da doutrina. Regina Beatriz Tavares da Silva, ao atualizar o livro Curso de Direito Civil, de Washigton de Barros Monteiro, na edição de 2004 já afirmava que os pais “podem ser condenados em indenização para reparar os danos acarretados ao filho, com base nos princípios gerais da responsabilidade civil (Cód. Civil de 2002, art. 186)”.

De fato, o art. 19 da Lei 8069/90 (ECA) dispõe que “toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, […]”.

Por sua vez, o art. 227 da CF/88 estabelece como “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Ora, se é dever da família assegurar à criança e ao adolescente o direito à convivência familiar, nos exatos termos do art. 227 da CF/88, é certo que os pais não podem, por ação ou omissão voluntária, violar esta norma jurídica.

A convivência familiar, como o próprio nome indica, pressupõe companhia e acompanhamento constante. Logo, o dever dos pais é de cuidado em relação aos filhos e de tratá-los igualmente, sem privilégio de uns para com os outros.

A omissão dos pais em “cuidar dos filhos” equivale, portanto, ao abandono, a abdicar do necessário dever de assegurar o direito a uma vida digna e à convivência familiar, daí a caracterização da ilicitude, atingindo, com isso, um bem juridicamente tutelado.
Assim, mesmo considerando o caráter subjetivo da liberdade afetiva dos pais, contudo, o abandono do filho gera indenização, porque, “amar é faculdade, cuidar é dever”.

Portanto, mesmo que não se possa obrigar o pai a amar o filho, o ordenamento jurídico não o isenta do dever de cuidá-lo. Aliás, como explica Paulo Lôbo, no Livro Direito Civil – Família, “a afetividade, como princípio jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico […]; assim, a afetividade é dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles”.

Ao proferir a decisão ora comentada o STJ fez jus à denominação Tribunal da Cidadania, posto que contribuiu para a promoção da Justiça social, daí merecer o reconhecimento da classe jurídica.