AS FUTUROTECAS E O FRESCOR DOS PENICOS

 

Vitor de Athayde Couto

 

Uma inovação da indústria de cerâmica pôs fim a um constrangimento histórico na comunicação entre as pessoas. Explico: quantas avós proíbem os netos de conjugar o verbo cagar? Em vez disso aí, digam fazer cocô. As avós radicais exageram. E acabam produzindo um péssimo resultado: criança criada com vó. Já ouvi avó ensinando a falar assim: vovó, eu telo fazê um totôzinho. Pronto. É o bastante pro neto ganhar um doce. Felizmente, a indústria passou a produzir descargas com dois botões para economizar água. Mijou? Aperte o botão número um. Cagou? Aperte o dois. Isso mudou o paradigma da comunicação. Agora, as pessoas de qualquer idade podem falar, sem constrangimento: com licença, vou ali fazer um número dois.

 

– Pai amado… E não tem zero três, zero quatro…? – perguntou Fogoió.

 

– Não, 01, 02, 03, 04… isso é só mais uma “página infeliz da nossa história”.

 

– Pai amado…

 

– Dizem que a palavra biblioteca tem o significado de depósito de livros. Mas a informação ficou tão complexa que inventaram até ciência pra cuidar dela.

 

– E quem disse que biblioteca é depósito de livros?

 

– Culpa dos gregos, com seus biblion e tekê. Mas, na dinâmica da informação, é preciso considerar os objetos-não-livros. Foram criadas seções de periódicos, documentação, descartes (nada a ver, viu?). Sem ter onde guardar, conservar, localizar rapidamente, e disponibilizar mapas para consulta em local adequado, os doutores criaram a mapoteca. Depois, a cinemateca, videoteca, discoteca, cedeteca, pinacoteca, hemeroteca, bedeteca, e outras tecas. Juntaram tudo num só lugar, informatizaram e chamaram de midiateca.

 

– Aqui em Parnasia não tem midiateca.

 

– Mas isso já é passado. A moda, agora, é futuroteca, a biblioteca do futuro.

 

– Diabéisso?

 

– É difícil explicar. Com a desmaterialização dos meios, graças à IA e à internet das coisas, não há mais necessidade de grandes espaços para tantos objetos.

 

– E onde as pessoas leem?

 

– Tem razão, eu havia esquecido. Tanto as biblio quanto as midiatecas tinham também o objetivo de disponibilizar espaços confortáveis e silenciosos para os frequentadores. Agora que tudo está desmaterializado, qualquer lugar serve. Basta ter um celular ou tablet. Mas existe um lugar especial, preferido de todos.

 

– E onde fica esse lugar tão especial assim?

 

– Ora, fica no banheiro, claro. Mais especificamente, no vaso sanitário. É onde as pessoas mais leem e escrevem atualmente. Escrevem, não. Digitam.

 

– Ah, já sei! É por isso que a internet está cheia de merda, né não?

 

– Não fale assim, Fogoió.

 

– E como devo falar, então?

 

– Diga que a internet está cheia de número dois. Mas não seja injusto. Na internet também se encontram muitas coisas boas.

 

– Eu sei, eu sei. Mas, por falar em merda, digo, por falar em número dois, ouvi um diálogo numa dessas lojas-oficina onde se vendem celulares novos e usados. O técnico estava revoltado porque a maioria dos consertos que ele faz é de aparelhos que caem no vaso sanitário. Felizmente a concorrência dos fabricantes acabou tornando os celulares resistentes à água.

 

– E ao mijo, também? Ops, desculpe, ao número um, também?, haha.

 

– Verdade, haha. Quanto ao técnico, estava tão indignado que tinha decidido dar somente livros pros dois filhos dele. Livros em papel, em vez de celulares.

 

– E por quê? Posso saber?

 

– Ele disse que ninguém nunca levou livro pra ele consertar. Livro não quebra. Nem fica com a bateria descarregada na hora em que você mais precisa dele.

 

– Verdade. Quase todo celular cai na privada. Livros, nunca. Nunca ouvi falar.

 

– Mesmo assim, as bibliotecas públicas estão vazias. Acho que é consequência do processo de privatização das bibliotecas, as futurotecas.

 

– Mas, como se explica tanta afluência de estudantes à biblioteca do município de Lagoa do Boi, que ainda é pública?

 

– Já li sobre isso. A explicação é que sobraram uns vasos sanitários do projeto “Meu (celu)lar, minha vida”. Daí, o prefeito mandou assentar os vasos no lugar das cadeiras velhas da biblioteca municipal. O bom resultado é que os leitores ficam mais concentrados e absorvem muito mais conhecimento.

 

– Pai amado…

 

– Verdade. Muito mais conhecimento e poesia.

 

– O quê? Poesia também? Poesia no banheiro? Na privada?

 

– E por que não? Os banheiros de palha, de Manuel Bandeira (“Evocação do Recife, 1925: Um dia eu vi uma moça nuinha no banho”), têm tudo que os poetas precisam: isolamento do mundo, silêncio, aromas, mistério, sexo e… natureza (“O cacto”, 1925; e “Trucidaram o rio”, 1935).

 

– Pai amado… poesia até na privada… Fala sério!

 

– Sim. Em 1948, Bandeira já tinha profetizado as futurotecas, no seu poema “Infância”. A poesia pode estar em qualquer lugar: “(…) O banheiro – núcleo de poesia. / O cambrone – núcleo de poesia (la fraîcheur des latrines!).”

 

– Diabéisso?

 

– No Recife, privada é cambrone. Bandeira deixou, em francês, a frase de difícil tradução. Alguns traduziram como “a frescura dos vasos sanitários”, “a frescura das privadas”, etc. Mas eu prefiro o frescor dos penicos. Acho mais poético.

 

***

 

Quando o príncipe virou sapo (cururu), desceu do Monte Parnaso. No sopé dos altos píncaros conheceu o asfalto moderno e a desigualdade (“O bicho”, 1947). Não mais isolado do mundo, encontrou no cotidiano pequeninos nadas. Talvez tenha sido Bandeira, antes de Drummond e Vinicius, o primeiro a perceber que o povo, faz tempo, já descia do morro, cansado de pisar nos astros, distraído.

 

Foto: Escultura O Pensador (Le Penseur), do artista francês Auguste Rodin