AS MIL E DUAS NOITES

 

Vitor de Athayde Couto

 

– Ôxe, miga, não são mil e uma noites? – perguntou Anaïs. Mani, sua amiga, tinha acabado de ler uma dessas narrativas reversas pós-modernas.

 

– Diabéisso? – insistiu Anaïs, ao que Mani respondeu:

 

– Narrativas reversas são a desconstrução das antigas lendas falocratas de dominação das elites mediterrâneas, tanto muçulmanas quanto cristãs. Lendas são vitais para que os políticos exerçam um poder durável. Os corões são como as bíblias. Existem a versão oficial, com imprimatur, e as genéricas, de conveniência, adaptadas para assegurar diferentes estilos de poder, em cada tempo e lugar. Livros sagrados são como certas loucuras, têm método. Quando necessário, editam-se novas Propostas de Emenda dos Corões.

 

– PEC? Igual no Brasil?, haha. E por que mil e duas noites?

 

– Bem, de fato eram mil e uma, até o dia em que Haddad tentou matar Sherazade, na milésima segunda noite.

 

– Oi?

 

RESUMO DAS MIL E UMA NOITES

 

Tomada de surpresa, Anaïs ficou confusa. Não se lembrava de nenhum Haddad nas mil e uma lendas que ouviu na infância. Puxando pela memória, começou do zero. Sharyar, rei persa, foi enganado pela primeira esposa. Não lhe bastou tê-la executado. Para se vingar, casa-se diariamente com uma virgem diferente que ele mata na madrugada de cada noite de núpcias. Ele estava convencido da deslealdade e infidelidade de todas as mulheres. Determinou que os homens podiam se casar com até seis mulheres. Determinou também que cada homem podia ter a posse e o porte de até seis adagas. Para acabar com a série de massacres no palácio, Sherazade, filha do vizir, decide casar com o rei e contar-lhe, cada noite, uma história palpitante, porém, sem terminar. Curioso pelo final de cada história, o rei vai adiando o feminicídio até se completarem mil e uma noites. Quase três anos! Mas não se falou do que teria acontecido na milésima segunda noite. Por que isso nunca foi contado?

 

A MILÉSIMA SEGUNDA NOITE

 

– Por conveniência, miga. Para o sistema funcionar, o poder da hierarquia tem que ser preservado. Sherazade, que tinha uma inteligência excepcional, sabia disso. E temia por sua vida e das outras mulheres. Seu repertório de histórias e sua criatividade já estavam se esgotando. Sem permissão para sair do palácio fortificado, nada de interessante acontecia. A sua sobrevida fazia o rei cair nas graças do povo de memória curta, por parecer misericordioso e apaixonado, no estilo felizes para sempre. Desde meninas fomos acostumadas a ouvir “era uma vez”. E a acreditar no final feliz, o que é pior. Essas lendas são contadas na idade em que as meninas pequenas vivem no mundo da fantasia.

 

– Mas… quem é Haddad? E por que elx tentou matar Sherazade?

 

– Elx é ela, miga. Haddad é sobrenome. A belíssima Joumana Haddad fora encarregada da missão de penetrar no palácio impenetrável. Ela tinha uma arma poderosa, era uma das melhores bailarinas do reino. A ordem para essa missão foi emitida pelo TPM ou Tribunal Pró Mulheres, imbatível em ações terroristas de fechar o balaio, arma letal, citada em todos os livros sagrados.

 

– Mas, por que matar Sherazade? Pode-se dizer que ela salvou mil e uma vidas. E nunca foi reconhecida por isso.

 

– Porque o tribunal achava que, se ela permanecesse viva, o casal continuaria feliz para sempre. Traduzindo, o homem dominaria a mulher para sempre.

 

– Oi?

 

– Pense comigo. Imagine se o príncipe Charles e a princesa Diana fossem apaixonados. Aquele gadão que fica aplaudindo do lado de fora dos portões do palácio não ia sair de lá nunca. Bastava a princesa dar um peido, tava todo mundo lá, cheirando…

 

– E daí? O amor pode até feder, mas… não é lindo?

 

– Sim, é tão lindo quanto dizer que dinheiro não traz felicidade. E não há nada mais eficaz para preservar o poder do que um rei apaixonado. Amor e riqueza é o sonho de consumo de qualquer cliente de tarólogos e quejandos.

 

– Ainda não estou entendêêêindo…

 

– Existem milhares de narrativas de reis bons e maus. Só de jovens virgens, esse miseravão do Sharyar matou centenas! Fora as outras pessoas que ele mandou executar, principalmente bruxas, por causa da sua cornite crônica. Ô doença desgraçada! Esses cornovírus atacam sempre nos piores momentos.

 

O DESFECHO

 

Sherazade fez amizade com Giulia, uma camareira bruxa que vivia disfarçada no palácio. Com ela conseguiu um veneno tão eficaz que permitia até calcular o dia da morte da vítima. Faltando uma semana para completar as mil e uma noites, Sherazade colocou sete gotas de água-tofana no chá de menta que seu marido bebia antes das orações. Na tarde que antecedeu a milésima segunda noite, o rei Sharyar curvou-se sobre o tapete, de onde nunca mais se levantou. Assim Sherazade prestou um grande serviço a todas as mulheres do reino.

 

Quando o Sol se pôs, e, sem saber do ocorrido, Haddad conseguiu penetrar nos aposentos reais, sob o pretexto de ir dançar para o rei Sharyar. Ao encontrar Sherazade na antecâmara, aplicou-lhe pelas costas um golpe quase fatal de acínace. Com o pescoço ferido, Sherazade caiu no chão, sorriu em silêncio e perdoou Haddad, que conseguiu fugir do palácio. Mais tarde, ao saber que Sherazade e Giulia foram queimadas na fogueira, por ordem do vizir, pai de Sherazade, Haddad suicidou-se saltando do alto do Damavand.

 

Moral da história: os tribunais sempre erram. Quando a pena é de morte, não há como corrigir o erro. Muitos persas acreditavam que Sherazade só conhecia mil e uma lendas. Quando o seu estoque acabou, para não ser executada, encontrou uma solução no envenenamento do marido. Mas seu propósito foi mais abrangente do que salvar apenas a sua vida.

 

Assim termina a milésima segunda e última noite. Sherazade liberta as mulheres de mais um feminicida. Infelizmente, outros psicopatas, nobres e plebeus, ainda irão nascer. A bruxa Giulia Tofana sabia que certas doenças não têm cura nem vacina. Pelo menos uma vez na vida, quem nunca pensou em envenenar o próprio marido?