Quando criança costumava passar com a família as férias do mês de julho na Pedra do Sal, localizada na ponta do litoral piauiense, na foz do rio Parnaíba.
Segundo os historiadores, navegadores fenícios visitaram o lugarejo praiano, cuja localização era considerada favorável à realização de experiências astronômicas. Até hoje existem pessoas que lá procuram seres extraterrestres em pontos estratégicos.
Registra ainda a história que o navegante português Nicolau de Rezende naufragou na bela praia do litoral parnaibano em 1571, tendo sido socorrido por índios tremembés com os quais conviveu pacificamente durante cerca de quinze anos.
No livro “A Sereia Mariá e a História das Comunidades da APA Delta do Parnaíba”, edição realizada pela Comissão Ilha Ativa – CIA, colhi o seguinte depoimento de Teresa Severiano dos Santos a respeito das origens do povoado litorâneo: “A história nos mostra que os primeiros moradores fizeram parte do pessoal de Severo, que era o Antônio Severo, João Severo, Ângela Vieira, Antônio Bernardino e o pessoal de Emília.”
Na década de 1950 não havia ponte nem estrada interligando o centro da cidade ao pequeno arraial de pescadores. Percorriam-se a pé, a cavalo ou de jipe os quinze quilômetros de areal. Um dos maiores desafios no trajeto consistia em atravessar de jipe ou de cavalo a frágil e estreita ponte do Penico Quebrado, armada com troncos de carnaúba sobre riacho de água cristalina. Adiante, o Morro do Labino, parada obrigatória para os viajantes que se deliciavam com a paisagem dos lagos em seu entorno.
O lugarejo não apresentava qualquer sinal de civilização, exceto o do pisca-pisca do velho farol erguido entre as pedras em 1873 e que durante muito tempo foi a única luz que alumiava nas noites escuras da praia a vida do pequeno povoado de pescadores. Alumbramento total: mar, areia, brisa, pedra, peixe. Peixe cozido na lenha, peixe frito no carvão. Pés na areia, no sal, na pedra. Delícia. Nada de jornal, telefone, televisão. Água de cacimba para beber e para tirar o sal. Luz de vela, de lamparina, de candeeiro, de petromax.
As casinhas de veraneio, todas de barro e cobertura de palha de carnaúba, enfileiravam-se em frente do mar da Praia Mansa, numa extensão não superior a um quilômetro. Por trás delas, espalhavam-se os casebres de palha dos pescadores, normalmente sem alpendre, indispensável nas casas de veraneio. Era no alpendre que se armavam coloridas redes de tucum. Deitado confortavelmente no embalo da rede acompanhava-se o embalo das ondas que na maré alta arrebentavam mansamente à porta de casa, bem como a chegada de canoas a vela, carregadas de pescadas, serras, cavalas e camurupins que muitas vezes eram negociados ali mesmo na beira do mar depois de extraídas as vísceras e as escamas.
O morador que possuía a mais confortável casa era o senhor Matias, professor leigo que construiu entre pequenos morros alvacentos e coqueiros de largos e longos leques verdes a sua morada, onde funcionava também a única escolinha de alfabetização do lugarejo.
As três casas de veraneio com melhor localização e de onde se avistava toda a praia pertenciam aos irmãos Luís, João e Alberto Silva, frequentadores assíduos do paraíso litorâneo.
Essas casas erigidas entre os rochedos foram depois reformadas, mantida a simplicidade do uso da palha e da carnaúba. Uma delas foi idealizada por Roberto Pilin e projetada por Gerson Castelo Branco, em formato de asa delta, e hoje compõe com as pedras que a circundam uma das paisagens mais belas e fotografadas do nosso pequeno litoral.
Um dos objetos que mais me encantaram na infância vivida na Pedra do Sal era um relógio de sol, que, segundo fiquei sabendo mais tarde, já se construía na Babilônia há uns 600 anos antes da Era Cristã. O engenho pertencia ao senhor Almeida, que, orgulhoso, gostava de explicar-lhe o funcionamento: consistia em marcar as horas através da iluminação de um corpo exposto ao sol, que projetava, de conformidade com o passar do dia, uma sombra variável sobre um estrado de madeira fixado no chão de areia no qual, em forma de meia-lua, figuravam as linhas e os números que mediam o tempo.
Foi a partir da infância que aprendi a amar a Pedra do Sal e a admirar-lhe a majestosidade da paisagem: o pôr-do-sol, as dunas, os cajueiros, os coqueiros, as praias – a Mansa e a Forte – , as lagoas, o farol, o pontal, as rochas, o Morro Gemedor…
A lendária história de amor de Intã, jovem e bela índia tremembé que socorreu na praia, desmaiado, um náufrago branco por quem se apaixonou perdidamente e passou a chamar de Ará, tem alguma semelhança com a bíblica história de Sephora, uma das filhas do pastor Jethro, que encontrou, sedento e esgotado, o futuro esposo Moisés, na terra de Madian, no meio do deserto que havia sido condenado a percorrer por força de decreto do faraó egípcio Ramsés II.
Libertador do povo israelita da escravidão no antigo Egito, Moisés, em árabe Musa, isto é, o que foi retirado das águas do rio Nilo por Bithiah, filha do Faraó Seth I, que o fez Príncipe do Egito, destacou-se ainda ainda como grande líder religioso, legislador e profeta a quem a autoria da Torá é creditada e a quem a Bíblia denomina o “mais humilde que todos os homens que havia sobre a face da terra”.
No desfecho, ambas as histórias, guardadas as proporções, têm também relação entre si. Elas transcorrem em morros – Morro Gemedor e Monte Sinai, que é conhecido em hebreu como Monte Horeb, ou em árabe como Jebel Musa , situado no sul da Península do Sinai, região considerada sagrada pelo judaísmo, cristianismo e islamismo. Na lenda indígena, Intã e Ará foram soterrados no doce leito do amor numa noite de forte tempestade. A areia acumulada sobre eles formou o Morro Gemedor, que até hoje reproduz ao contato com corpo humano os gemidos do casal apaixonado; na narrativa sagrada, o Profeta de Israel após o cumprimento da missão libertadora se despede de seu povo para sempre, braços abertos para os céus, continuando lá no topo da montanha a iluminada caminhada pela estrada cada vez mais larga, cada vez mais longa, cada vez mais alta, cada vez mais linda…
Durante as férias, um grupo de quinze a vinte pessoas, crianças e adultos, reservavam um dia inteiro para um passeio até o Morro Gemedor. A caminhada era longa, passos lentos, várias paradas para repouso à sombra de cajueiros, e se estendia – ida e volta – do brotar ao pôr-do-sol. Os passos iniciais eram dados na orla marítima rumo ao Pontal. As ondas, beijando-nos os pés, eram convite para frequentes mergulhos. No trajeto de poucos quilômetros pelas areias úmidas da beira do mar catávamos búzios, estrelas-do-mar, intãs, mariscos e gostávamos de espocar a pau belas e temíveis caravelas coloridas até ali arrastadas pelas ondas.
Revigorados pelos mergulhos, nos sentíamos prontos para continuar a jornada e enfrentar areal escaldante e vegetação rasteira que não raro nos espetava os pés. A sinfonia das ondas do oceano ia ficando para trás , substituída pelo coro estridulante dos tetéus, que em bandos e em voos rasantes acompanhavam-nos os passos.
Quase ao sol a pino alcançávamos finalmente o pico do misterioso morro de onde se avistava lá embaixo, reluzindo ao sol, uma lagoa em cujas águas azuis se saciava a sede e se mergulhava para tirar o sal. Era no movimento da descida quase vertical do morro à lagoa que se ouvia o ronco da areia, fenômeno natural transformado em sobrenatural pela imaginação popular.
O cartão postal que melhor identifica a Pedra do Sal é o que estampa as suas pedras.
Humberto de Campos, reportando-se ao ano de 1895, quando passou três meses com a família na Pedra do Sal, lembra no livro “Memórias”:
“… a maior curiosidade do lugarejo
eram, entretanto, os seus rochedos. Havia
pedras enormes de feitios bizarros, de dez
a mais metros de altura. Algumas constituiam,
mesmo, a reprodução da fisionomia humana.
E eu ainda me lembro de uma, grande e alta
como uma casa, que possuía dois olhos, e nariz,
e a boca imensa, rota em uma das extremidades.
A onda vinha de longe e atirava-se à cara do
monstro.”
A exemplo de Humberto de Campos, o que mais me fascina na Pedra do Sal são as rochas, que em verdade já não ostentam o tamanho que tinham no passado, porque parcialmente soterradas.
Algumas são conhecidas (ou eram?) pelo nome: a Pedra da Gruta, que abrigava pequena imagem de Nossa Senhora, em torno da qual, em desalinho, minúsculas e toscas peças de madeira – braços, mãos, pernas, pés – ali depositadas em retribuição às graças alcançadas; a Pedra do Sino, que encantava a garotada por produzir som metálico quando tocada por outra pedra; e a mais imponente de todas – a Pedra Gigante, com formato de rosto humano, em cuja boca enorme só chegavam os mais afoitos. Os mais cautelosos ou medrosos, como eu, só iam até o imenso olho esquerdo da rocha, onde cheguei diversas vezes a me sentar e a me deitar para me deleitar com a delícia da paisagem empedrouçada e marítima. Nessas horas de silêncio e meditação em que a alma parece elevar-se a Deus, eu me sentia, ali, acomodado no olho do “monstro” e diante da imensidão oceânica do mar, como Napoleão Bonaparte , que, exilado na Ilha de Santa Helena, onde faleceu, gostava de fitar de cima de um rochedo as espumantes ondas marítimas.
Na descrição de Afonso Henriques de Guimarães Neto, no livro “Napoleão”, publicado pela Editora Três, “são sombrios rochedos de flancos abruptos quase verticais, emergindo das águas e levantando os escuros braços para o céu, como se quisessem revelar a terrível força da erupção vulcânica que lhes deu forma e origem.” No belo e longo poema “Napoleão”, de Gonçalves de Magalhães, deparamo-nos com a famosa cena em que o Imperador da França, roto, alquebrado, contempla a vastidão do mar sem fim:
“Ei-lo sentado em cima do rochedo,
Ouvindo o eco fúnebre das ondas,
Que murmuram seu cântico de morte:
Braços cruzados sobre o largo peito,
Qual náufrago escapado da tormenta,
Que as vagas sobre o escolho rejeitaram;
Ou qual marmórea estátua sobre um túmulo.”
A respeito da Pedra Gigante, referida por Schwennhagen como “uma grossa pedra esférica, que os pescadores denominavam de globo”, e comparada por Humberto de Campos à “cara do monstro”, – ouvi na infância fantásticas estórias narradas por pescadores, principalmente Antônio Severo, o maior contador de “causos” no lugarejo. A Pedra Gigante – meninos, eu ou/vi – é, além de encantadora, encantada. Coisa de meter muito medo. Quem duvidar que nela suba à meia noite.
O amor que sinto pelos rochedos do litoral parnaibano me inspirou alguns poemas como estes:
AMOR ÀS PEDRAS
por que as pedras me fascinam tanto
a ponto de me deixarem tonto
se tanto nenhum encanto noto
na pérola esmeralda opala?
por que as pedras me fascinam tanto
tonto de me deixarem a ponto
se não tenho para amante saco
com rubim ametista diamante?
vãs, as esmeriladas faíscas de pedras
engastadas em pescoços braços ou dedos:
por mais caras – não têm o preço doutras pedras;
por mais raras – se não igualam às estrelas.
as paisagens empedrouçadas de cada hora
são mui mais sedutoras que miragens outras:
é só fitar as pedras da Pedra do Sal
no brasido do brotar ou do pôr-do sol.
amo as pedras silenciosas, imóveis
e não preciosas da Pedra do Sal.
bem acima de tão queridas rochas
contudo, – amo as pedras sepulcrais.
AS PEDRAS DA PEDRA DO SAL
ó Pedra Gigante
da Pedra do Sal
ó Pedra do Sino
da Pedra do Sal
ó Pedra da Gruta
da Pedra do Sal
– quero um pouco desse
vosso grosso sal
a fim de que o bem
imponha-se ao mal.
PEDRA DO SAL
Pedra do Sal
porta do céu
porto do cio
pista do sol
no sal azul.
PAISAGENS LITORÂNEAS
I
na praia da
Pedra do Sal
à meia luz
do arrebol
crepuscular
nada é mais tão
deslumbrador
que o pôr-do-sol
O L
B A
D E
O O
U R
que reverbera
na imensidão
do mar sem fim
II
de cima
das pedras
da Pedra
do Sal
me apraz
olhar
as ondas
do mar
que andam
sem nunca
parar
sempre uma
atrás
da que
se faz
espuma.
Das minhas composições sobre a Pedra do Sal a que mais tem sido citada é o soneto “Pedra do Sal”, que foi exibido em exposição de fotografias/poemas organizada pelo fotógrafo Aureliano Müller nos salões do Clube dos Diários, em Teresina. Além de ter sido publicado em livros, antologias, revistas, jornais, – figurou em dois belos livros-álbum: “Parnárias: Poemas sobre Parnaíba”, organizado pelos poetas Alcenor Candeira Filho, Elmar Carvalho e pelo fotógrafo e escritor Inácio Marinheiro, e “Parnaíba: a Pérola do Litoral Brasileiro”, de Inácio Marinheiro. Eis o mencionado soneto, com o qual encerro este artigo:
PEDRA DO SAL
Ser pedra certamente não é uma boa
se de forma especial pedra que não se move
e que a resplandecência não tem das preciosas.
Mas quando as pedras fito da Pedra do Sal,
airosamente imóveis e silenciosas,
todo o tempo cravadas nágua azul de sal
(soluareia e estrelas ao redor da qual)
– aceito como boa a condição de pedra.
Os que me pisam piscam olhos alumbrados,
os que me pintam pedem a eternidade,
os que me sentam sentem o ímpeto da volta.
De mim, à vara, pescam-se peixes dourados
que espargem pela praia, onde a onda quebra,
escumas e escamas que atraem gaivotas.
Por Alcenor Candeira Filho