BORBONHOCA

 

Vitor de Athayde Couto

 

Ao maestro Domingos Cunha

 

Quando quase nada ainda era politicamente incorreto, rolava uma daquelas piadas de português.

 

– E daí? Qual a novidade? – perguntou Anaïs.

 

– A novidade é que eu ouvi essa piada contada diretamente por outro português.

 

– gngngn…

 

– O português era um cientista renomado, com especialização em Etologia. Foi pesquisar na Amazônia, a serviço da OMS. Depois de muitos anos observando o bioma, sobretudo a fauna, finalmente havia chegado o momento de executar um projeto ambicioso: cruzar um jacaré tinga com uma tartaruga tracajá.

 

– E qual foi o resultado?

 

– De trinta ovos, só um vingou. Nasceu um português de capacete, disse o português bem-humorado.

 

– Haushaushaus…

 

– Que foi? Tá tudo bem contigo?

 

– Sim, sim. É que a minha risada é alpha. Vem diretamente do pâncreas.

 

– Ah, tá. É uma risada pancreática que me faz lembrar a infância.

 

– Pois é, Mani. Minha tia já tinha ouvido essa mesma piada, em Portugal, mas o cientista era brasileiro haushaushaus… Esse assunto puxa aquelas pegadinhas sem fim que a gente ouvia no recreio.

 

– Que pegadinhas?

 

– Aquela série que começava assim: “você sabe qual é o resultado do cruzamento entre…?”

 

– Verdade! Tinha um montão.

 

– Eu gostei muito quando perguntaram: o que que vai nascer se uma borboleta cruzar com uma minhoca?

 

– E nasce o quê? Já ouvi mas não me lembro.

 

– A resposta é: se não for borbonhoca só pode ser minholeta.

 

– Haushaushaus…

 

– Tá tudo bem, mesmo? Tens certeza?

 

– Dããã…

 

– Borbonhoca ou minholeta… é o mesmo caso do Chico Brown.

 

– O quê? Esse nome, Chico Brown, parece resultado do cruzamento do Chico Buarque com o Carlinhos Brown, haushaushaus…

 

– Sim, e é mais ou menos isso mesmo.

 

– O quêêê???

 

– Calma. Não é o que estás pensando. No meio do caminho tem uma Helena. Chico Brown é neto de Chico Buarque e filho de Carlinhos Brown.

 

– Péra! Aí já é covardia!

 

– Por quê? – perguntou Mani, curiosa.

 

– Ora, com uma herança musical assim, é ou não é covardia?

 

– Pois é. Tu já ouviste a porta Em qualquer tom?

 

– Ainda não.

 

– Pois ouve, miga. Essa música é uma aragem, uma inspiração biológica, no sentido respiratório. Ajuda a expirar o esgoto que o som alto nos obriga a ouvir, na voz escarrada desses valentes espancadores de mulheres-esquema-preferido.

 

– Aff… a porta “Em qualquer tom” me lembra uma velha piada de músicos.

 

– Conta, conta!

 

– É assim: quando os músicos não se entendem nos ensaios, um deles pergunta: “qual é o tom?”. Daí os outros respondem, bem no estilo tiozão do pavê: tom mix, tom & jerry, tomzé, tom jobim, tom cruise, tom holland, tom cavalcante… até esgotar a escala musical. Poucos ouvintes percebem que a zoeira é dirigida a quem não sabe fazer a conversão, a mudança de tom.

 

Finalmente, o maestro encerra a zoeira, da capo, e decide “o tom é lá no sol fá com mi em cima de si sem dó”.

 

– Ré, ré, ré… – Assim riem todos, com saudades.

 

Do céu caem monoversos, tão imprescindíveis quanto chuvas de caju:

 

“Reluzente / Desilude / Renitente / Vagalume”

 

Se viajares nos versos em noite escura

 

Vagalumes atlânticos te guiarão até Portugal.

 

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Escute o texto com a narração do próprio autor: