CÃO E CIRCO

 

Vitor de Athayde Couto

Anaís começa a acordar de um sono profundo. Sonhou que abraçava e beijava Mani. Mas não era Mani, era Priscylla, a cadelinha branca que lambia a sua boca de manhã cedo.

O leitor poderia pensar que se trata de uma manifestação de carinho da amiguinha fiel: o cão (pet, em parnasianês), melhor amigo de todes (do homem, em parnasianês). Mas, não. Priscylla estava apenas lambendo cuspe de anjo.

– Cuspe de anjo? Diabéisso?  Acho até que já ouvi falar mas não me lembro o que significa – observa Anaís.

No sonho, Anaís era negra, daí, o seu coração ter disparado, logo ao acordar assustada. Foi preciso sonhar, no caso, ter um pesadelo para sentir na pele dois tipos de preconceito. Ela sabe que ser negra e homossexual no Brasil significa sobreviver perigosamente. Sim, no Brasil não se vive. Sobrevive-se. Pensou até em cobrir o corpo com tatuagens coloridas para se esconder atrás das figuras de dragões e super-heróis. Só assim o seu corpo estaria protegido pela liga da justiça, conforme os americanos ensinaram e continuam ensinando aos brasileiros e outros brincantes no quintal do tio Samuel, repleto de telões.

Do outro lado da cama queer size Mani faz alongamentos de Williams. Passa a mão na boca para ver se também está suja de cuspe de anjo. Não está.

– Cuspe de anjo, sabe, Anaís? É aquela babinha que sai da boca das crianças que ainda mamam e forma uma casquinha branca por causa das golfadas de leite (refluxo, em parnasianês). Os pets adoram lamber diretamente na boquinha das crianças, melhor do que ração premium. Os pais acham lindo.

– Tá, mas, agora me diga, Mani. Por que cão e circo? Não seria pão e circo?

– Sim, nos bons tempos em que ainda havia pão. Agora é só circo e circo. Tem gente que deixa de comprar pão pros filhos porque gasta o que não tem com cachorrinho frufru. Além de comprar o filhote customizado e caro, vai continuar gastando com remédios, vacinas, tosas, banhos terapêuticos, pentes, escovas, lacinhos de fita, lencinhos no pescoço, casinhas, coleiras, peitorais com guia retrátil, cílios postiços, sapatinhos, pulôveres, perfumes… Fico me perguntando se pets gostam mesmo de perfume. Com aquele faro apurado, deve ser um grande sofrimento para eles. Aí vão acabar nos psicãoterapeutas, psicãoatras haha.

– E você nem falou das cirurgias estéticas. Gente doida, né?

– Doida, nada. Os veterinários e donos das clínicas de petshops não acham. Donos de laboratórios, muito menos.

– Mas, me diga: que diabo é filhote customizado?

Design, miga. Design!

– ???

– Seguinte: cada cachorrinho é desenhado, sob encomenda, pela indústria genética. O objetivo é satisfazer as necessidades patológicas das donas e dos donos (tutores, em parnasianês). Não me refiro aos cães de guarda, de trabalho (caçadores, pastores ou puxadores de trenós). Não falo de cães de companhia para pessoas deficientes, solitárias, em tratamento… muito menos de cães-guia, que sempre existiram na natureza e merecem o nosso maior respeito. Refiro-me a esses filhotes inventados e clonados, produzidos para se ganhar dinheiro. Assim eles engordam uma cadeia produtiva mais complexa e eficiente do que a própria indústria de alimentos humanos.

– Ah, agora, entendi. Os antigos romanos, escravocratas, inventaram pão e circo (panem et circenses). Mas, na corrida pelo aumento da exploração, os capitalistas foram mais além. Inventaram o circo e o circo (circus and circus).

– O circo e a cerca, miga.

– É verdade. O circo e a cerca elétrica que aposentou os cães de guarda.

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Ouça o texto com a narração do próprio autor: