CHÁ DE BURRO GURMÊ

 

Vitor de Athayde Couto

Minha avó dizia que, antigamente, o transporte urbano mais importante era feito por carroças puxadas a burro. Ao contrário da logística pós-moderna, as carroças cumpriam as entregas com pontualidade. Por quê? – aproveitei pra perguntar, enquanto ela ainda era viva. – Como isso se explica? As empresas de logística não usam informática, aviões, caminhões e até motocicletas? Ela respondeu, não faz muito tempo:

– É porque as carroças nunca paravam para abastecer. O seu abastecimento era feito em pleno voo.

– Mas, como, vovó? Burro voa? Explique, por favor.

– Não, neném. Burro não voa. Cada burro tinha um saco de pano ou de couro, contendo milho, que era amarrado ao focinho. À medida que o burro puxava a carroça, ia comendo milho, tudo ao mesmo tempo.

– E descomendo também? Haha.

– Sim, seu safado. Devido ao esforço que fazia, o burro babava tanto que o milho no saco virava uma gororoba, quase um mingau de saliva. É daí que vem o nome “chá de burro”.

– Eca!

– Pois é. Quando o carroceiro ia merendar no mercado, pedia sempre um copo de chá de burro, também conhecido como mungunzá (ou munguzá, mugunzá, manguzá… a escolher).

– E como é que a senhora sabia que era um carroceiro?

– Ora, era muito fácil. Assim como os médicos só andam com um estetoscópio pendurado no pescoço, os carroceiros penduram um chiqueirador no ombro.

– Chiqueirador? Diabéisso?

– Psit! Não fale assim. Diga: que diacho é isso? Rum!

– Desculpe, vovó, mas, o que é mesmo um chiqueirador?

– É um chicote de couro cru, usado para tanger os bichos, até prendê-los no chiqueiro. Deve até existir o verbo chiqueirar, eu chiqueiro, tu chiqueiras…

– Que chique! Falar nisso, será que chique vem de chiqueiro?

– Com certeza, neném.

– E o que é chique, vovó?

– Por exemplo, se o carroceiro toma chá de burro no mercado, isso não é nada chique, é só popular. Mas, se o doutor toma chá de burro gurmê, na praça de alimentação do shopping, isso é chique.

– Por quê, vovó? Qual é a diferença?

– Seguinte, tudo que é chique é gurmê; e tudo que é gurmê é mais caro e tem sempre um chef por trás. A diferença entre o popular e o gurmê é a mesma que existe entre o chiqueirador e o estetoscópio.

– Entendi, vovó. É a mesma diferença entre o pé-de-moleque e o pé-de-moça.

– Sei o que é pé-de-moleque, mas, pé-de-moça…

– Não sabe? Pé-de-moleque é amendoim com rapadura…

– E pé-de-moça? – interrompeu vovó.

– … pé-de-moça é amendoim com leite condensado. Uma certa marca suíça manda tanto na “cultura” dos brasileiros, que, além de desfigurar o nosso tradicional pé-de-moleque, “criou” o doce mais “típico” do Brasil: o brigadeiro! Basta abrir duas embalagens e levar ao fogo o padre e a moça.

– “O padre e a moça”? Conheço, eu vi esse filme!

– Não, vovó. O padre é como chamam o chocolate do brigadeiro, mas o certo é chocolate dos dois frades.

– E a moça?

– A moça é o leite condensado. Como dizia minha tia: leite de moça haha. Garanto que, não vai demorar muito, os chefs vão botar leite condensado no mungunzá. Depois, esse mungunzá contemporâneo será servido numa tigela de borda infinita sobre um prato quadrado e decorado com canela em pó. Parodiando Paul Bocuse, a cozinha contemporânea é assim: a canela decora o prato mas não chega no mingau.

– Óazideia! Fale baixo, porque, se algum chefe ouvir, os preços vão subir.

– Não duvido nada, vovó. Afinal, esse é o meu povo, o povo brasileiro!

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