DELIVERY
Vitor de Athayde Couto
Mente quem diz que neto não consegue tudo o que quer. Pois lá vou eu comprar salsichas para fazer cachorro-quente. Entro na loja de uma grande rede de supermercados, supondo que ali os produtos são bem conservados, no prazo de validade, e os funcionários são capacitados e muito bem treinados. Vou ao balcão de frios e peço salsichas para cachorro-quente da minha marca preferida – mesmo sabendo que ali só se vendem marcas mêaboca, trazidas pelos fornecedores de sempre, que abastecem todo o comércio da cidade.
Faço o meu pedido e logo percebo a cara de paisagem descompreendida do vendedor. Repito o pedido, gasto todo o meu repertório de sinônimos, em vão, e ainda caio na besteira de falar o nome original de uma das versões do produto: quero salsicha tipo frankfurt. A paisagem permanece incólume. Tento outra: quero salsicha tipo viena, mas é inútil, pura perda de tempo. Agora só me resta gesticular como se fazia na pré-história, antes da invenção da linguagem. Simulo um pão cortado, recheado com uma salsicha e um pouco de molho. Abro a boca para morder o pão invisível e emito um “au-au” bem primitivo, como fazem as criancinhas. O vendedor, como que avaliando o meu grau de loucura, finalmente larga o celular e fala alguma coisa:
– Ah, o senhor quer rotidógui – diz o vendedor em parnasianês castiço.
Ai, que raiva! Bem que meu pai um dia me falou para que eu estudasse inglês. Humilhado, respondo sim, por favor. Afinal, eu só quero resolver o problema e acabo comprando… A marca? Melhor esquecer. Tem de um tudo, como dizia minha madrinha. Estranhas marcas half mouth (mêaboca, em parnasianês).
Vou até o caixa, ops, cash point, pago em espécie, ops, cash, agradeço, pego a sacola, ops, bag, e tomo o rumo de casa, ops, home. Ruminando minha memória ram, lembro uma publicidade da maior rede de fast food do mundo.
Quando passo em frente a uma escola, observo a calçada repleta de junk food. A vendedora de creme de galinha na calçada anuncia delivery. À sua volta, um time de motoboys espera, cada um com sua backpack de isopor.
Um pouco mais adiante, um pipoqueiro grita: “faço delivery”. E assim fazem os demais vendedores de churros, balas, espetinho (cat skewer, em parnasianês), queijo coalho na brasa, rapadura com farinha de puba, e até de um tudo, como diria minha madrinha. Rapidamente descubro que todo comerciante faz delivery, desde aspirina até geladeira, menos um…
– Menos quem? – pergunta um passante conhecido que me ouviu, avaliando o meu grau de loucura. Segundo ele a minha piora se deve a efeitos colaterais provocados pela pandemia. Parece até que a covid acabou produzindo um monte de “psicoterapeutas” que só sabem repetir esse mesmo diagnóstico.
– Menos quem? – insiste o passante.
– Menos a maior rede de fast food do mundo – respondo.
– Como assim?
Expliquei que essa rede, que tem origem anglofônica, criou um serviço de delivery para atender a todas as suas lojas aqui no Brasil.
– E daí? – ele perguntou, sempre avaliando o meu grau de loucura.
– Daí é que o serviço se chama “McEntrega”, para vergonha de quase todos nós que não valorizamos o nosso idioma – respondi.
Confesso que a sua cara lembra a mesma cara de paisagem descompreendida do vendedor de… com perdão da palavra… hot-dog. Ainda um tanto descompreendido, ele faz uma última pergunta:
– Mas, o que é mesmo McEntrega?
– Delivery – respondi.
– Ah… agora entendi.
NOTÍCIA:
O Professor Manuel Domingos Neto tem feito um excelente trabalho em Parnaíba, na área da cultura e do conhecimento. Como parte das atividades do Gabinete de Leitura, que ele organiza, destaca-se o seminário “Guerra e mudança da ordem internacional”. Com muita honra fui convidado para participar do módulo “Sanções econômicas como arma de guerra”. Você pode assistir na íntegra, abaixo:
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Escute o texto com a narração do próprio autor: