Donfiscote << ou >> Em boca fechada não entra língua – Por Vitor de Athayde Couto
DONFISCOTE
ou em boca fechada não entra língua
Vitor de Athayde Couto
O alto-falante do jipe uílis anuncia a todo volume: DOMINGO / NA ALVÍSSIMA TELA CINEMASCOPE DO CINE THEATRO PARADISO / GRANDE FILME DE CAUBÓI / ESTRELANDO: JÔNI MACHO NA BRONHA / FRÉDI MACHO NO MURRO / E BÚRTILENCASTRO. / NÃO PERCAM!
O jipe não dá sossego aos parnasianos. Domingou na fila do cinema. Culumins anunciam revistas de histórias em quadrinhos, pra trocar. Um deles, cabelo cortado na máquina quase-zero com pimpão, grita bem alto:
– Donfiscote! Donfiscote! Tenho revista do Donfiscote!
– Donfiscote, diabéisso? – Cheguei perto pra conferir e… haha, é uma revista do Randolph Scott, o Randy, de Sete homens sem destino, Pistoleiros do entardecer, Matar ou morrer, O homem que matou o facínora… Revista muito procurada, por sinal.
– Só troco por duas – vai logo impondo o culumim.
Protestei. Disse que o certo é trocar uma pela outra, sem torna. Afinal, eu tenho uma revista do mesmo tope – e bem conservada! Trata-se de número especial do Roquilâni (Rocky Lane), um caubói que também é muito macho no murro.
– Mas o Donfiscote é melhor. Ele é mais macho do que o Roquilâni. Ganha de todos os bandidos – insistiu o menino-metido-a-machão-fazendo-arminha. O culumim tem verdadeira adoração pelo seu ídalo, tadim, mal sabe ele que… bem… vamos já saber, haha!
Trocadas as revistas, figurinhas, e outros objetos secretos, aquela ruma de culumim entra pra ver o filme. Não se vê uma boca parada. Todas estalam chiclete bola e fazem um barulho parecido com sapos felizes na lagoa.
Conforme anunciado, estrelavam: Jôni Macho na Bronha (John Mac Brown), Frédi Macho no Murro (Fred Mac Murray), e Búrtilencastro (Burt Lancaster). Sala cheia, foi bom demais, principalmente pro pipoqueiro Fogoió e o Caramba Bombonzeiro que vendeu uma caixa inteira de chiclete bola. Só não foi melhor porque a fita quebrou umas cinco vezes, bem na hora da troca de bofetes. Broxante. Quando isso acontece (e sempre acontece), o filme é retomado lá adiante. Assim, a gente acaba perdendo alguns metros de aventura, mas nunca perde a coragem de protestar, com firmeza:
– Ó o roooubo! Devolve meu dinhêêêro! La-drão! La-drão! – gritam todos.
Nesse momento, Seu Samango, o fiscal malhadão, acende as luzes do salão pra ver quem está quebrando cadeiras, e expulsar o dimenó. Pra servir de exemplo, alguém sempre sai arrastado pela orelha.
Fora o prazer da molecagem, quem mais gosta da quebra do filme são os colecionadores de pedaços de acetato. Por isso, o funcionário encarregado da exibição é sempre bem tratado. Ele doa os quadrinhos – ou vende, dependendo de como está a relação entre o preço da corda de caranguejo e o seu salário.
Quadrinhos, assim são chamados os pedaços de fitas quebradas que a gente colecionava. Eventualmente, os quadrinhos serviam de moeda de troca. Não existia Banco Central, e a Casa da Moeda nem desconfiava que a gente já tinha criado um sistema monetário perfeito e confiável, que nenhum brasileiro jamais conhecerá. Simplesmente porque tudo era baseado na palavra, na confiança.
Anos 50, bons tempos. A gente crescia feliz, inocente e sem culpa, sem nunca desconfiar que o valente caubói era bissexual na vida real. Durante muitos anos, Donfiscote dividiu a sua luxuosa cama queen size com o galã Queer-e-garante (Cary Grant), por quem as mulheres tanto suspiravam. Mal sabiam que o caubói suspirava muito mais do que elas, mas era pelo Donfiscote, e ainda com direito a uma boa cafungada no cangote suado, com a barba por fazer, como todo caubói usa, haha.
E assim todo o nosso dinheirinho foi parar em Roliúde, capital mundial do cinema e da ilusão. Dinheiro honesto, suado do trabalho infantil, das vendas de jornais velhos, revistas, garrafas vazias e frutas dos quintais dos outros.
Pra quê? Ora, pra gastar, pra ver mocinhos dando bofetes em bandidos, em defesa de mocinhas indefesas, metidas naquelas saionas de crentes, e sapecar, antes do the end, um bêjorréi-de-boca-fechada. O caubói ficava vermelho na hora de beijar. Reparando bem nos quadrinhos, contra a luz do sol, viam-se gotas de suor pingando da sua testa. As caretas que fazia antes do beijo obrigatório pareciam caretas de culumins lombriguentos, na hora da colherada também obrigatória de purgante, a terrível Emulsão de… Scott (disculpaê o trocadilho, Randy, foi mal).
Móde as lombrigas? Quem sabe? Só lembro de ter lido no rótulo da embalagem da emulsão: “óleo de fígado de bacalhau, contém vitaminas A e D”. Mas eu jurava que era “A”, de Antes; e “D”, de Depois de… descomer no mato.
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Escute a narração na voz do próprio autor:
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