– Neste último dia do ano…
– O quê?
– ?
– Tu nunca foi disso, rapá. Dacapouco vai querer cantar “Então, é Natal…”
– Haha, tu sabe. Eu sei que tu sabe…
– O quê?
– Toda vez que chega o fim do ano, aparece palpiteiro e analista.
– Diabéisso?
– Palpiteiro chuta pra frente. Fala dos astros, joga búzios, cartas, define cores, manda pular ondas… Ainda são sete? Nem sei. Com essa inflação do arroz já deve ser bem umas dez…
– E analista, o que é?
– Analista analisa, haha.
– É. Claro, claro… Mas analisa o que, ô mon p’tit sac?
– Analisa os fatos passados, os dados, as estatísticas. Este ano promete ser o ano da contagem dos mortos. Como no fim da guerra. Os caras vão atrás de tudo que foi pesquisado durante o ano. Na internet. Ou no gúgli, sei lá. O certo é que andaram divulgando que as palavras mais buscadas pelos brasileiros foram “assintomático” e “humanidade”.
– Assintomático, tá explicado. Afinal, foi o ano da covid. Mas… humanidade? Por quê?
– As duas palavras têm quase o mesmo sentido, e sempre andam juntas. As entrevistas nos jornais, na tv e nos vídeos não param de repetir: “é preciso aumentar a humanidade, aumentar a humanidade…”
– Êitcha! Com tanta gente no mundo? Ainda querem aumentar a humanidade? Só na China tem pra mais…
– Disseram também: “quem é assintomático é porque tem humanidade”.
– Tá certo. Isso é coisa de Deus. Quem é humanista não morre de covid. Tem humanidade. É assintomático. Nada mais justo. Mas… por que buscar humanidade?
– Foi o que eu disse pro uberizado que me trouxe até aqui. Ele não parava de falar que prefere dirigir pela avenida, sempre pela faixa etária da esquerda, porque assim anda mais rápido. Por mais que eu explicasse que não é humanidade, mas imunidade, o máximo que ele conseguiu falar foi “imanidade”.
– Melhor do que nada, né?
– Pois é. Mas ele é gente boa. Até me indicou o irmão dele que é encanador e também faz serviço de pedreiro. Era tudo que eu tava precisando. Um vazamento bem no quarto da minha filha menor deixou tudo molhado. E ainda estragou a pintura da parede.
– E o irmão dele foi?
– Na hora. Pedi pra ele pintar logo a parede porque a cama da menina fica bem junto. Ela é alérgica a champignons.
– E o serviço? Ficou bom?
– Ainda não. Quando falei pra começar pela pintura ele explicou que era preciso, primeiro, consertar o vazamento e depois esperar a parede secar, senão eu ia perder a tinta. Assó o que ele disse, e ainda me chamou de doutor: “Pois é, doutor. Eu não posso pintar a parede enquanto ela estiver molhada. Mas, como está fazendo muito sol, eu volto pra pintar, daqui a três dias, quando a parede não tiver mais nenhuma humildade.”
Por Vitor de Athayde Couto