Movimentação na região da Cracolândia no 1º dia da operação para internações compulsórias de dependentes químicos no centro. (Foto Divulgação)

Sob uma forte polêmica, começa a funcionar nesta segunda-feira (21) um acordo entre autoridades de São Paulo que tornará mais ágil a internação forçada de usuários de crack em clínicas de desintoxicação. 

Especialistas ouvidos pela BBC Brasil disseram esperar que a ação não se revele mais uma operação repressiva como já ocorreu no passado na Cracolândia — com o intuito aparente de apenas tirar os dependentes de drogas do centro da cidade, sem uma forma efetiva de tratamento. 

A ação é baseada em um termo de cooperação técnica assinado pelo governo do Estado, Tribunal de Justiça, Ministério Público e OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). 

Ela cria uma equipe integrada por médicos, assistentes sociais e juízes sediados no Cratod (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas), no parque da Luz, próximo a região da Cracolândia. 

Segundo o desembargador Antônio Carlos Malheiros — responsável pela parte do TJ na parceria — os dependentes químicos serão levados ao local a fim de passarem por avaliação médica. Caso o usuário necessite de uma internação e se recuse a submeter-se a ela, promotores pedirão a um juiz de plantão que decida sobre uma internação compulsória.

Hoje a lei brasileira prevê três tipos de internação: voluntária, involuntária (por determinação do médico e familiares, se o paciente não tiver condições de decidir) e compulsória (por decisão judicial).

Por ordem do juiz, os dependentes de crack que necessitarem serão imediatamente levados contra sua vontade para uma clínica especializada conveniada com o o governo. Todo o processo deve acontecer em poucas horas.

Ao anunciar a parceria na semana retrasada, o governador Geraldo Alckmin afirmou que o Estado dispõe de aproximadamente 700 leitos especializados para atender os dependentes químicos, a maioria em clínicas conveniadas.

Convencimento

Malheiros disse que passou mais de seis meses visitando diariamente a Cracolândia para estudar o assunto. Ele diz acreditar que a solução para o problema do crack em São Paulo não é uma política higienista, de recolhimento em massa.

Para ele, a internação compulsória dos dependentes é necessária, mas deve ser usada apenas como ‘um exceção a regra’.

O magistrado afirmou à BBC Brasil que estratégias do governo usadas no ano anterior — nas quais a Polícia Militar dispersou usuários de drogas do centro — não são as mais adequadas.

O ponto que mais preocupa especialistas é como serão feitas as abordagens aos dependentes químicos na Cracolândia a partir desta segunda-feira: por convencimento ou coerção.

Segundo Malheiros, a ideia da parceria é que a PM esteja presente, mas não participe das abordagens — que devem ser feitas apenas por assistentes sociais e agentes de saúde.

Porém não está claro como usuários contrários à própria internação serão levados espontaneamente para a avaliação médica.

Malheiros afirmou que alguns familiares estão se organizando para convencer e levar seus parentes usuários de crack ao Cratod.

Segundo o magistrado, o tempo de internação forçada determinado pelo juiz será de acordo com a orientação dos médicos.

Leia abaixo as opiniões dos médicos psiquiatras Ronaldo Laranjeira e Dartiu Xavier da Silveira, ambos da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) sobre o tema da internação forçada:

Contra

Para o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, a internação forçada é negativa, de maneira geral. Ela se justifica apenas em aproximadamente 5% dos casos, quando o dependente de crack também apresenta um problema mental grave. Segundo ele, o tratamento de usuários de drogas mais efetivo é voluntário e envolve visitas regulares a clínicas e centros especializados.

Silveira é um renomado professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), onde coordena o Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes.

Segundo ele, há situações específicas, do ponto de vista médico, nas quais se justifica a internação involuntária. Isso acontece quando o paciente apresenta psicose (delírios de perseguição e alucinações) ou risco iminente de suicídio.

‘Essa pessoa pode não ter um juízo crítico da realidade e então cometer um absurdo, mas não é o crack que faz isso com ele, é o problema mental’, disse.

Ele afirmou ainda que, embora os estudos sobre o tema sejam controversos, a taxa de recuperação dos dependentes é maior em um contexto ambulatorial do que no de uma internação.

‘É relativamente fácil alguém ficar longe da droga quando está internado, isolado, em condições ideais. O difícil é se manter longe da droga quando você volta para o convívio com a família, com o emprego, com os problemas’, disse.

‘A consequência é que a grande maioria recai no primeiro mês depois da internação. Além do custo ser muito maior que um tratamento ambulatorial, a eficácia é menor’.

Ele afirmou que a população de rua pode ser tratada de forma ambulatorial. Essa abordagem já é usada com frequentadores da Cracolândia. ‘Isso já é empregado de uma forma muito bem feita’, disse.

O psiquiatra defende ainda que sejam oferecidos aos usuários o benefício das moradias assistidas – chamadas no exterior de ‘halfway houses’, hoje ainda insuficientes no Estado —, onde eles receberiam além do teto, acompanhamento médico e ajuda para conseguir emprego e se restabelecer socialmente.

Sobre as críticas de que o número de dependentes na região não diminui ao longo dos anos, Silveira explica que o problema da Cracolândia é majoritariamente social e não médico.

‘A condição de miséria da população de rua é decorrência de uma omissão do Estado, da falta de acesso a moradia, à saúde, à educação. O estado de vulnerabilidade em que eles se encontram os torna suscetíveis a se tornar dependentes químicos, mas a droga é consequência e não causa’.

Segundo ele, frequentemente as autoridades fazem operações massivas na Cracolândia nas quais prevalece o caráter agressivo e repressivo em detrimento do tratamento por meio do convencimento. Ele citou como exemplo ações ocorridas no início do ano passado — onde policiais militares apenas espalharam os frequentadores da Cracolândia pelo centro da cidade. 

‘(Essas medidas) destroem anos de trabalho de confiança estabelecida entre o agente de saúde e o morador de rua’. 

‘A gente precisa começar a dar a essa população condições mínimas de cidadania, de qualidade de vida. Isso é uma coisa que o Estado não quer encarar. (A atual ação) me parece mais uma tentativa de tomar uma medida com um impacto midiático, político’. 

‘Mas a gente sabe que isso não vai resolver o problema. Um tipo de proposição dessa ordem é algo que não seria aceito em um país de primeiro mundo’. 

A favor 

Para o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, internar de forma compulsória moradores de rua extremamente dependentes de crack é um ‘ato de solidariedade’. Segundo ele, a maioria das pessoas que chegam contra sua vontade em clínicas de tratamento acabam aderindo voluntariamente ao tratamento após os primeiros dias de internação. 

Laranjeira é professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e uma das maiores autoridades no assunto no país. Ele se diz favorável à facilitação das internações compulsórias em casos extremos, desde que acompanhada de uma linha especial de cuidados ao paciente após sua desintoxicação inicial. 

Ou seja, apenas em casos realmente necessários, sem a adoção de uma abordagem simplista ou higienista, para ocultar um ‘problema’ urbano. 

‘Você tem que cuidar daquelas pessoas que estão desmaiadas na rua (devido ao uso abusivo do crack). Isso é um ato de solidariedade e não cárcere privado’, disse. 

Segundo Laranjeira, a maioria dos países democráticos já tem mecanismos para viabilizar a internação compulsória. ‘Na Suécia, 30% do tratamento psiquiátrico é coercitivo. Os Estados Unidos têm pesquisas que mostram a eficiência desse tratamento e a classe média no Brasil já vem fazendo isso há muito tempo também’. 

Segundo ele, a internação por ordem judicial está prevista na lei brasileira e já é bastante comum em São Paulo, mesmo antes do início da atual parceria anunciada pelo governo. 

Dos cerca de 100 leitos de uma clínica chefiada por Laranjeira no interior do Estado, 50% são ocupados por pessoas internadas por ordem judicial. Ele diz acreditar que a tendência se repete em toda a rede especializada no tratamento de dependentes químicos. 

‘Toda semana eu faço uma ou duas internações (forçadas) na minha clínica. Mais de 90% delas em uma semana se tornam voluntárias’, disse. 

Segundo Laranjeira, a pessoa que necessita de uma internação à força chega à clínica em uma situação grave, na qual é praticamente incapaz de discernir o que é melhor para ela. Quando a crise inicial passa, ela começa a ter condições de analisar a situação e acaba concordando com o tratamento.

De acordo com o psiquiatra, o governo de São Paulo já deu um passo significativo quando começou a abrir leitos (30 atualmente) para internação de mulheres grávidas usuárias de crack. Em sua opinião, nesses casos a internação involuntária é muito necessária, pois não envolve apenas a saúde da mãe, mas também a do bebê. 

De acordo com Laranjeira, quando uma pessoa é internada compulsoriamente por estar em um estado emergencial de dependência, seu período médio de permanência na clínica não deve ultrapassar dois meses. 

Uma vez estabilizado, o paciente deve ser submetido a uma fase de tratamento ambulatorial – frequentando uma clínica especializada uma ou duas vezes por semana, para receber acompanhamento médico, psicológico e de assistentes sociais. 

No caso dos moradores de rua — que não podem passar por esse tratamento enquanto hospedados na casa de familiares — ele defende o uso de moradias assistidas. 

Elas são necessárias pois é comum que o usuário de crack que acaba numa cracolândia não possua mais emprego, bens e esteja afastado da família. 

Nessas moradias, o usuário pode entrar ou sair livremente e recebe apoio do Estado para reconstruir sua vida – ao mesmo tempo que tem a dependência química monitorada.

Fonte: meionorte.com