IROKO

 

Vitor de Athayde Couto

– “O chefe da milícia, pelo telefone, mandou me avisar.” Iaí, bora?

– Bora pra onde?

– Bora na comunidade. Lá tem carne negra esperando bala.

No dia seguinte o corpo do menino Edivaldo apareceu estirado no chão. Vítima da política miliciana de ódio, divulgada pela grande mídia-passadora-de-pano, sob o sugestivo nome de “bala perdida”, Valdinho ainda ia completar 11 anos. Nunca pediu celular pois conhecia a sua realidade, o seu lugar de fala tímida e, principalmente, conhecia o seu lugar de silêncio.

No dia do seu aniversário, sua mãe solteira e lavadeira de ganho, dona Iaiá costumava voltar da rua com um presentinho, seja uma bola chinesa, uma camisa genérica do Baêa, ou um ioiô – assim ela chamava o filho: Ioiô de Iaiá. Poucas crianças brancas recebem tanto afeto carinhoso em vida. Mas, naquele ano, assaltaram dona Iaiá no centro da cidade. Levaram os 20 reais que ela economizou e vinha guardando aos pés de Exu pra comprar o presentinho no calçadão dos camelôs.

– Bem feito, macumbeira! – xingou a vizinha que se diz religiosa e de família – quem mandou se meter com os demônios desses terreiros de macumba?

Naquele exato momento, um vento bravo atingiu a comunidade, derrubando telhados, roupas e tudo mais que encontrou pela frente. Todos correram pra se abrigar. Restou só o corpo de Valdinho no Terreiro de Jesus. A sua roupinha branca revoava e dona Iaiá pensou que o corpo do seu Ioiôzinho se mexeu.

Na esperança de que o único filho ainda estivesse vivo, permaneceu ao seu lado, enfrentando o vento bravo de Oyá. Pôs a mão na testa, como sempre fazia, pra ver se ele estava com febre. Mas Valdinho não estava mais ali, exceto um corpo duro e frio, de olhos abertos. Como bom erê que sempre foi, Valdinho não estava só. Envolto no sasará, já estava sendo conduzido pela mão do velho Omolu, até o Iroko. Ao receber essa mensagem pelo vento, dona Iaiá se conformou. Ela sabia que, cuidar do corpo, agora era só obrigação terrena, pois o seu erêzinho ia ser bem acollhido no Reino da Natureza.

No caminho até o Iroko, Valdinho, ainda um pouco assustado, ouviu gritos de sofrimento. Mas o velho Omolu tranquilizou-o, dizendo:

– Não se preocupe. O que você está ouvindo não existe, porque não pertence ao nosso reino. Lá, aonde vamos, não existem demônios nem inferno. Isso é coisa da imaginação de almas enganadas e enganadoras.

Chegando ao Iroko, Valdinho sobe até o galho mais alto, de onde avista todo o reino. Não há campos de soja transgênica, nem venenos. Só a mata viva que transpira rios aéreos de orvalho infinito e limpo.

Iroko abre as portas do Orum. Valdinho entra e começa a brincar de ioiô com os outros erês. Feliz, joga bola com a camisa do Baêa, livre do ódio das pessoas de bem que inventam infernos e demônios para seu próprio consumo.

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