Em 19 de junho de 2008 entrava em vigor a Lei 11.705, que ficou conhecida como Lei Seca por reduzir a tolerância com motoristas que dirigem embriagados, colocando o Brasil entre os países com legislação mais severa sobre o tema.

ls1

No entanto, a atitude dos motoristas pouco mudou em 10 anos. Um levantamento do G1, por meio da Lei de Acesso à Informação, somou mais de 1,7 milhão de autuações com crescimento contínuo desde 2008.

O avanço nos últimos 5 anos ficou acima do aumento da frota de veículos e de pessoas habilitadas, indicando que o número de motoristas flagrados bêbados continua crescendo, em vez de diminuir com o endurecimento das punições ao longo destes anos.

  • Pelo menos 118 mil foram encaminhados a uma delegacia por crime de trânsito
  • MG e SP lideram ranking de infrações registradas
  • Falta de banco de dados prejudica o planejamento de ações
  • Álcool é a 2ª maior causa de mortes no trânsito no Brasil
  • Estudo estima que Lei Seca salvou 41 mil vidas entre 2008 e 2016
  • Número de motoristas que assumem o risco de beber e dirigir ainda é grande
  • Última mudança na lei renova esperanças em reduzir a sensação de impunidade

ls2

E o mais grave é que o volume deve ser bem maior que o registrado pela pesquisa, já que não há um registro nacional das informações e muitos estados não foram capazes de informar a quantidade de condutores flagrados bêbados, principalmente entre 2008 e 2012.

Do total de autuações, pelo menos 118 mil foram de motoristas encaminhados à delegacia por crime de trânsito, mas este número é ainda mais longe da realidade – 7 estados não informaram quantos foram detidos em flagrante em nenhum ano.

Como a fiscalização do tráfego é uma atribuição compartilhada entres os municípios e os Detrans, cada estado tem suas maneiras de agir para coibir direção e álcool: alguns são mais atuantes, outros menos.

ls4

Entre 2008 e 2018, a quantidade de autuações pela Lei Seca em cada estado foi na maioria das vezes proporcional à frota de veículos e ao número de CNHs registradas, com algumas exceções.

Com a maior frota (28 milhões) e a maior concentração de motoristas (20,9 milhões), São Paulo só não foi o primeiro em autuações porque informou os dados somente até outubro de 2017.

A liderança ficou com Minas Gerais, que teve 255 mil infrações. O volume representa 14,8% do total no país inteiro, sendo que o estado possui 16% da malha rodoviária, 11% da frota e 10,2% das CNHs válidas.

Já o Distrito Federal registrou o maior índice de autuações na comparação com o número de motoristas registrados: 8%. Foram 121 mil autuações para 1,5 milhão de CNHs no estado. Minas Gerais obteve 3,8% neste índice, e São Paulo, 1,2%.

ls5

Com o 6º maior volume de condutores e 6ª maior frota, a Bahia não respondeu às solicitações, mesmo depois de 50 dias. Com isso, o estado aparece apenas com as multas aplicadas pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), em 19º lugar.

Entre 2013 e 2017, período em que a base de dados é mais completa, 11 estados registraram queda no número de autuações, com destaque para Rio de Janeiro (-33%), Ceará (-23%), Pernambuco (-20%) e Santa Catarina (-11%). Outros 15 estados e o Distrito Federal tiveram alta.

Dirigindo no escuro

A falta de organização de dados para análise prejudica o planejamento de ações e também a medição dos efeitos de cada mudança na lei, além de descumprir o Código Brasileiro de Trânsito, de 1997.

“Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos municípios, no âmbito de sua circunscrição: coletar dados estatísticos e elaborar estudos sobre os acidentes de trânsito e suas causas.” (artigo 24 do CTB)

Nos últimos anos há uma tentativa de uniformizar os métodos, encabeçada por seis Detrans, com a liderança do Rio de Janeiro. Pela primeira vez, houve neste ano uma operação no mesmo dia e horário em todos os estados.

“É descabido no século 21 um órgão não ter banco de dados para fazer o planejamento das ações”, diz Antonio Gouveia, presidente da Associação Nacional dos Detrans.

De acordo com José Ramalho, diretor do Observatório Nacional de Segurança Viária, o grande desafio é mais do que ter dados, é analisar e tomar ações práticas. “Se você não sabe onde está, como saber para onde ir?”, questiona.

Mais de 20 anos depois da lei, são poucos os órgãos que coletam informações nos acidentes fatais e relacionam a causa com embriaguez. O problema não é exclusivo do Brasil. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas 31% dos países fazem testes em todos os acidentes.

No Brasil, Polícia Rodoviária Federal cumpre um protocolo em todos os acidentes com verificação de sobriedade. Nos últimos 10 anos, o órgão relacionou o álcool como causa provável de 66.541 colisões, 4.101 mortes e 16.657 feridos graves.

Não é acidente

O álcool é a segunda maior causa de mortes no trânsito no Brasil, afirma a Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet). O primeiro deles é a velocidade acima do permitido. E os dois podem ser evitados com atitudes simples: não correr e não beber.

O risco de um acidente fatal é multiplicado por 5 quando o motorista dirige a uma velocidade 50% superior à permitida ou com 0,5 g/L de álcool no sangue (equivalente a duas taças de vinho em média), conforme avaliação do Conselho de Segurança Viária da União Europeia.

Essas atitudes simples são essenciais para o Brasil cumprir a meta firmada com a ONU de reduzir em 50% as mortes no trânsito entre 2011 e 2020, mas os dados mais recentes mostram uma tendência de queda apenas depois de 2014.

É claro que o movimento de redução – ainda distante da meta – não pode ser atribuído apenas à Lei Seca, mas sem ela o resultado poderia ter sido bem pior.

leiseca-autuacoes-v5

Um estudo da Escola Nacional de Seguros, que não leva em conta aspectos qualitativos como a melhora na segurança dos veículos e nas condições das estradas, estimou que as ações vinculadas à Lei Seca evitaram a morte de 41 mil pessoas no Brasil de 2008 a 2016.

Os pesquisadores também afirmam que a segunda fase da Lei Seca (a partir de 2012) foi quase 3 vezes mais eficaz que a primeira (2008 a 2012), que era mais tolerante e tinha punições mais “leves”.

“É uma conclusão desconfortável, pois para reduzir as mortes no trânsito será necessária a implantação de medidas punitivas cada vez mais severas, aliadas a sistemas de fiscalização e monitoramento de obediência a lei, blitz mais frequentes e organizadas”, diz o estudo.

leiseca-mudancas-v3

Lei x Fiscalização

Embora cada localidade tenha obrigação de avaliar e decidir pelas medidas mais adequadas, existe um consenso em estudos internacionais de que o número de fiscalizações é mais eficaz em aumentar a percepção de risco de ser pego dirigindo bêbado.

Com baixo índice de mortes no trânsito em média, a maioria dos países europeus não adota a “tolerância zero” para álcool e direção, investindo em fiscalizações aleatórias, educação e punições efetivas, com suspensão do direito de dirigir e prisão nos casos mais extremos.

No Brasil, a sensação de impunidade é grande com relação à Lei Seca. No Distrito Federal, por exemplo, um motorista foi flagrado 14 vezes dirigindo bêbado, enquanto outro que já tinha sido flagrado 6 vezes provocou um acidente com morte.

Segundo Mauricio Januzzi, presidente da Comissão de Direito do Trânsito do OAB-SP, as multas não funcionam mais para inibir este tipo de ação e diversas brechas jurídicas ajudam a escapar das punições criminais.

“Passou a doer mais no bolso do que na pele do indivíduo. Isso não dá o exemplo necessário para que a pessoa se sinta intimidada”, afirma.

Segundo ele, as blitzes feitas em horários específicos e os aplicativos para desviar das fiscalizações também reforçam a tolerância ao “beber e dirigir”. “Se a pessoa não tem certeza da punição, ela corre o risco”, diz Januzzi.

Fonte: G1 com edição do Portal Costa Norte