Casa de Detenção no dia em que houve a tragédia do Pavilhão 9 (Foto: Arquivo/Diário de S. Paulo)

O massacre do Carandiru completa 20 anos nesta terça-feira (2) sem nenhum réu condenado à prisão pelo crime de assassinato. O caso ficou conhecido internacionalmente por causa da morte de 111 presos após a Polícia Militar entrar no Pavilhão 9 da Casa de Detenção, na Zona Norte de São Paulo, para pôr fim a uma rebelião. Para lembrar a data, parentes das vítimas ligados a movimentos sociais e entidades de direitos humanos prometem protestos na capital paulista.

Há duas décadas os familiares cobram da Justiça a condenação dos policiais militares acusados de assassinar os detentos. Nenhum agente das forças de segurança ficou ferido na ação. Todos os réus respondem ao processo em liberdade. Alguns se aposentaram e outros faleceram antes mesmo de serem julgados. A unidade prisional foi demolida e, no lugar, foi erguido um parque.

Na última sexta-feira (28), um grupo de entidades sociais, reunido sob o nome “Rede 02 de outubro”, divulgou um manifesto pelo fim dos massacres e contra a “reprodução e aprofundamento das desigualdades que demarcam nossa sociedade”. O manifesto marca o dia 2 de outubro como “dia pelo fim dos massacres” e cobra, do governo do estado e do governo federal, o cumprimento das recomendações feitas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, além de exigir a abolição dos registros de “resistência seguida de morte” e “auto de resistência”.

Entre os movimentos que compõem a rede estão a Pastoral Carcerária e o Mães de Maio. De acordo com o Padre Valdir Silveira, coordenador nacional da Pastoral, o estado fortaleceu e destacou os envolvidos no massacre. “Não adianta pôr no presídio quem matou outros presos. A primeira coisa seria afastá-los dos cargos, depois dar reparação às famílias”, disse ele. Um sobrevivente do massacre, presente no evento de divulgação do manifesto, disse não acreditar na Justiça. “Os massacres continuarão acontecendo enquanto quem ocupa os cargos competentes não assumirem seus papéis. […] o Estado foi omisso”, disse Sidney Sales. O ex-presidiário tem hoje um centro de reabilitação e desintoxicação de jovens, em Jundiaí.

Desde 2 de outubro de 1992, quando a PM fez a incursão ao Carandiru, somente um acusado foi julgado: o coronel Ubiratan Guimarães. Comandante do Policiamento Metropolitano e gerente daquela operação, ele foi condenado, em 2001, a 632 anos de prisão pelos assassinatos a tiros de 102 presos e por cinco tentativas de homicídios, em um julgamento popular em 1ª instância. A condenação do coronel não incluiu nove presos que morreram esfaqueados: a acusação alega que essas mortes foram provocadas pelos próprios presidiários.

Em 2006, no entanto, o júri foi anulado pelos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). O oficial da reserva da PM se tornou deputado estadual pelo PTB e passou a ter foro privilegiado. Julgado pelos magistrados, Ubiratan foi absolvido. O TJ-SP considerou a ação estritamente legítima. “Os presos que se renderam e não foram para cima [dos PMs] foram salvos e socorridos. Todo mundo fala no número de mortos. Ninguém fala do número de poupados, quase 2 mil”, disse o advogado Vicente Cascione, que defendeu o coronel.

Meses depois da absolvição, Ubiratan foi morto a tiros no apartamento onde morava, nos Jardins, região nobre de São Paulo. A namorada dele na época, Carla Cepollina, é acusada de matá-lo por ciúmes e será julgada em novembro deste ano. Ela nega o crime e responde ao processo em liberdade.

103 acusados e 117 vítimas
À época, a reviravolta jurídica que absolveu Ubiratan gerou criticas e repercutiu no exterior. Recentemente, as atenções se voltaram novamente para o caso. Na quinta-feira (27), o juiz José Augusto Nardy Marzagão, do Fórum de Santana, marcou para a partir de 2013 ojulgamento dos demais 103 réus no processo.

Segundo a assessoria de imprensa do TJ-SP, 83 deles respondem por homicídio, um responde a homicídio e lesão corporal grave e 19 são acusados de lesão de natureza grave. Para o TJ-SP, 117 presos foram vítimas dos policiais, sendo 111 mortos e um ferido: Edson Xavier dos Santos. Não há confirmação de seu paradeiro. Além disso, outros cinco detentos foram alvo de tentativa de homicídio.

Devido ao fato de a Justiça não possuir um espaço apropriado para acomodar todos os acusados juntos, o juiz José Marzagão decidiu dividir o júri deles em, pelo menos, cinco partes. Outra medida foi a de levar o julgamento para o plenário 10 do Fórum da Barra Funda, na Zona Oeste, por conta da quantidade de réus. O processo corre no Fórum de Santana.

Vinte e oito policiais das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), grupo de elite da PM paulista, acusados de matar 15 presos no 2º pavimento, que corresponde ao primeiro andar do Carandiru, serão julgados a partir das 9h do dia 28 de janeiro de 2013.

O magistrado dividiu o julgamento com base na ordem da denúncia feita pelo Ministério Público. A Promotoria acusou os policiais por homicídio e lesão corporal grave de acordo com o número de detentos que eles mataram e feriram nos quatro pavimentos superiores do Pavilhão 9.

O juiz Marzagão acredita que, até fim de 2013, todos os réus estejam julgados. O planejamento e a expectativa do judiciário são de realizar os julgamentos seguintes em um prazo de três meses. Para tentar dar mais rapidez aos depoimentos das testemunhas e interrogatório dos réus, os júris serão filmados e gravados.

“Optei por desmembrar os plenários e não o processo, que tem 55 volumes e mais de 11 mil folhas. Foi por uma questão de lógica. Além do número elevado de réus, no total, serão cerca de 70 testemunhas de acusação e outras 50 de defesa”, disse o juiz Marzagão ao G1.

Próximos julgamentos
Diante disso, os próximos policiais a serem julgados são mais 29 da Rota que entraram no 3º pavimento. Eles são acusados de matar 78 detentos. Entre os réus está o ex-comandante da Rota, o tenente-coronel Salvador Modesto Madia, que liderou a tropa por 10 meses e deixou o cargo em setembro. Em 1992, ele era tenente.

G1 apurou que existe a possibilidade de o então tenente-coronel Luiz Nakaharada, comandante da invasão da Rota no 3º pavimento, ser julgado sozinho dos demais ex-colegas. De todos os réus, ele é o único que responde por dois crimes: homicídio e lesão corporal. Ele é acusado de matar cinco presos: Antonio Alves dos Santos; Antonio Quirino da Silva; Paulo Roberto Rodrigues de Oliveira; Valdemar Bernardo da Silva e Valdemir Pereira da Silva.

Segunda a denúncia do Ministério Público, detentos sobreviventes haviam dito que Nakaharada disparou “uma metralhadora contra o interior da cela 339-E, matando todos os detentos que lá habitavam” e que “agiu isoladamente”. O acusado está aposentado atualmente.

Outra hipótese é a de Nakaharada ser julgado com mais outros 19 policiais que respondem por lesão corporal. Entre os acusados está Nivaldo Cesar Restivo, atual comandante da Rota.

Quinze policiais do Comando e Operações Especiais (COE) são acusados de matar oito detentos no 4º pavimento. Por fim, 12 integrantes do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate) respondem pela morte de dez presos no 5º pavimento.

Para a acusação, os policiais executaram os presos no Carandiru. A defesa discorda, e alega que réus reagiram a um ataque e atiraram em legítima defesa. A pena para homicídio é de até 30 anos de prisão, para lesão corporal, cerca de cinco anos de reclusão.

Demora
A Justiça demorou 11 anos para marcar o segundo júri dos outros réus do Carandiru, após Ubiratan, porque esperou, até a semana passada, um posicionamento da Polícia Técnico-Científica sobre se era possível fazer o confronto balístico das armas usadas pelos PMs com os projéteis retirados dos corpos dos presos.

A perícia do Instituto de Criminalística (IC) disse que o exame é impossível de ser realizado. Diante disso, o juiz Marzagão decidiu marcar o júri sem a prova pericial que serviria para individualizar a conduta de cada um dos policiais.

 

“Estou aqui desde julho e desde que o processo voltou, estamos dando prioridade para fazer o julgamento. É uma questão de honra. Acho que em número total de réus, esse deve ser o maior julgamento da história do Brasil”, afirmou Marzagão.

Para o advogado do coronel Ubiratan, a ausência do exame balístico impossibilita o julgamento dos outros policiais envolvidos na invasão ao Pavilhão 9. “Não tem condição de estabelecer quem disparou e, dos que dispararam, não tem como saber quem atirou em quem”, afirmou Vicente Cascione.

A advogada Ieda Ribeiro de Souza foi contratada para defender 84 réus das acusações de homicídio e lesão corporal. “Mas três deles acabaram morrendo e agora são 81”, explicou. Ela criticou o fato de não ter sido informada pela Justiça sobre a data do júri. “Não discordo que o júri ocorra no ano que vem. Discordo da forma como foi marcado, sem avisar as partes. Soube da data do júri pela imprensa. E discordo da maneira como será feito”, afirmou.

O promotor Fernando Pereira da Silva também disse não ter sido informado oficialmente sobre a data. “A Promotoria aguarda que todas as diligências e formalidades sejam cumpridas a tempo do julgamento para evitar a realização de um júri nulo. Com relação à decisão judicial de se marcar o júri para o próximo ano, o Ministério Público ainda não foi comunicado oficialmente disto. Só depois é que o órgão irá analisar a posição do juiz em relação à perícia e como vai se posicionar a esse respeito”, disse.

Ieda Souza chegou a comentar com o G1 que estuda a possibilidade de pedir a suspensão do júri de 2013. O TJ não confirmou se algum pedido de suspensão havia sido impetrado até esta segunda-feira (1º). A assessoria também não confirmou o número de policiais réus no processo que morreram.

De acordo com a advogada, o crime de lesão corporal irá prescrever até o fim deste ano, portanto, não poderá ser julgado em 2013. Questionado, o TJ respondeu que “não há possibilidade de prescrição, pois houve a interrupção do prazo com o acórdão que confirmou a pronúncia”.

Segundo a página do tribunal na internet, o advogado que defende 12 dos outros 19 réus acusados de lesão é Fransrui Antonio Salvetti. A equipe de reportagem não conseguiu localizá-lo para comentar o assunto.

Depoimento

“Foi um inferno na Terra, estou vivo por um milagre”, lembra o ex-presidiário da antiga Casa de Detenção e sobrevivente do massacre Jacy Lima de Oliveira. “Eu sobrevivi, eu vi a história, eu pisei em sangue que dava quase na canela, e isso não é exagero, não! Ouvi gritos que até hoje ecoam na minha mente”, contou o atual pastor evangélico ao G1, em uma entrevista feita no Parque da Juventude, construído após a implosão dos pavilhões do Carandiru e inaugurado em 2003. “Quando venho aqui eu me sinto livre, feliz de estar vivo. E me sinto também muito triste por saber que aqui morreu muita gente, e que os crimes estão impunes. Na verdade isso aqui é um tapete em cima de um grande montão de sujeira.”

No lugar do Carandiru foi erguido o Parque da Juventude, que nada lembra o passado carcerário (Foto: Flavio Moraes/G1)

No lugar do Carandiru foi erguido o Parque da Juventude, que nada lembra o passado carcerário.

Fonte: G1