NOMES FORA DA CURVA
Vitor de Athayde Couto
– Certa vez – continua Mani – minha vó me mostrou uma cartilha intitulada “Vamos Estudar?”. É uma velha cartilha onde ela aprendeu a ler. Fica sempre guardada com muito cuidado e carinho. Disse até que um dia vai ser minha. Quando ela morrer. Mas eu fui logo dizendo: não, vózinha, desse jeito eu não quero.
– Você agiu muito certo, Mani – disse a escrivã.
– Pois é. Aí, ela me mostrou a primeira frase que conseguiu ler: Ivo viu a uva. Ainda hoje ela escreve muito bem, ótima caligrafia. Melhor ainda, sabe ler histórias, faz as devidas pausas e entonações. Sou muito grata por isso, pois ela lia muitas histórias quando eu ia pra rede.
– Sim, já ouvi essa frase, Ivo viu a uva, muitas vezes. Ela é clássica, como aquela do primeiro dia de aula de inglês: the book is on the table.
– Haha, fico aqui imaginando como estão fabricando as novas cartilhas meidinchina. Tudo pós-moderno, com base na pedagogia científica e na consultoria de muitos psicopedagogos. Muitos. Aposto como eles mandaram substituir Ivo viu a uva por Ghreysiyelly visualizou a physalis. E em letras garrafais. Só depois é que vêm as letras cursivas. Em vez de comprar uma cartilha durável, que depois é repassada para os irmãos menores, a família agora é obrigada a comprar um murundu de publicações e cadernos decorados com super heróis da Marvel e mangás. Tudo descartável.
– Haha, é aí que eu começo a formular a minha tiuría.
– Já sei, já sei. E vou dizer qual é a sua tiuría, escute. Quando a criança dá muito trabalho pra nascer, a mãe se vinga botando um nome bem complicado que é pro futuro adulto lembrar sempre o sofrimento que lhe causou.
– Não, não é isso. Essa tiuría é muito antiga. E não tem nada a ver com as minhas observações das roupas e do sovaco ilustrado.
– Sovaco ilustrado? O que é isso?
– Como disse, essa gente diferenciada carrega um livro de capa preta sempre embaixo do sovaco. Acho que nunca leem, até mesmo porque não sabem ler. Aí, todas aquelas informações contidas no livro passam para o sovaco. Aí, o sovaco fica ilustre, ou seja, ilustrado. Ilustrado de conhecimento. Aí… deu pra entender? Uma vez assisti a uma briga de crentes de partidos diferentes. A mulher mandava a outra tirar a bíblia de baixo do braço, e gritava: Tira! Tira! Bíblia não é desodorante!
– Sim, haha. Mas quero saber mesmo é a nova versão que substituiu aquela do sofrimento das mães. Me conte.
– Olha, Mani, posso até estar errada, mas desconfio que são os pastores que mandam a família inventar esses nomes galifosos.
– Por quê?
– Mandam botar qualquer nome, desde que nunca seja um nome de santo católico. Por causa da concorrência.
– É verdade. Nunca mais vi recém-nascidos chamados Antônio, Maria, Pedro, Bernadete, Conceição, Francisco, Sebastião, Lurdes… Aliás, vi na mídia, mas é só filho de rico ou de celebridade.
– Pois é. Deve ser consequência do processo de evolução.
– Do macaco até o homem?
– Não. Acho que é o contrário. Felizmente a humanidade está evoluindo, mas é do homem até o macaco. Os pastores fálicos passaram a pregar nos cultos da rede das Igrejas Fálicas, as IF, dizendo que os nomes dos santos são nomes disfarçados do demônio. Daí o povo pergunta: então, que nome eu boto? Ora, diz o pastor, inventem. Daí o resultado é um enxame de maluquices. Ainda bem que o cartório já está informatizado. Aí a gente imprime um rascunho e dá pra família conferir. Aí, se tiver erro, é mais fácil corrigir no computador. Aí, depois de carimbado e assinado, já era. Aí, cada certidão de nascimento tem um número que ninguém pode mudar. Aí…
– E os nomes?
– Ah, miga, nem queira saber. Tem Adriele, tem Máicon, tem Edson…
– E daí? Qual o problema? São nomes bonitos.
– São, sim, mas… o problema é como se escreve. Cada família quer de um jeito. Por exemplo, nós já registramos 24 Adrieles diferentes.
– Como assim?
– Ora, tem Adriele com um éle, com dois… e até com três! Quer ver?
– Sim.
– Então, leia aqui.
A escrivã mostrou uma folha com registros dos seguintes nomes de Adriele:
Adriele / Adrielle / Adriellle / Adriely / Adrielly / Adriellly / Adryele / Adryelle / Adryellle / Adryely / Adryelly / Adryellly…
– Aff…
– Achou pouco? Pois tem mais, é só dobrar mais uma letra; “d”, por exemplo:
Addriele / Addrielle / Addriellle / Addriely / Addrielly / Addriellly / Addryele / Addryelle / Addryellle / Addryely / Addryelly / Addryellly…
– Aff, aff…
– Pois é. Fazem essa confusão pra depois chamar todas elas de Drica, haha.
– Aff, aff, aff…
– Entendeu agora por que tem que ter apelido? Pra todo mundo. E olhe que eu nem saí do segundo nome. Ainda estou na letra A. O primeiro é Adriana, quer ver as variações em torno do tema?
– Haha, chega, né?
– Não, não chega. Você precisa ver os nomes compostos. Imagine as combinações de várias Adrieles com outras tantas Alecsandras. As combinações são incontáveis, pois vão de A a Z, isto é, de Adriele Alecsandra até Adriele Zyldeneide. Mas isso é só a primeira Adriele. Há quem diga que a culpa não é dos pastores.
– De quem é, então?
– Ora, só pode ser da família real. Tudo começou com um tal Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon.
– Carái!
(próxima crônica: “EDDYRKRÊUDYSSON”)
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Escute o texto com a narração do próprio autor: