NONA MALDIÇÃO: A ESTÁTUA DO FALSO HERÓI
Vitor de Athayde Couto
– Bora que já é tarde, está anoitecendo, ficando escuro, anda, bora! – disse Vó Branquinha, chamando os netos.
Miguel caminha lentamente, tomando o rumo de casa, mas sem parar de olhar pra trás. Apesar do lusco-fusco na praça semideserta, ele ainda pode perceber novos movimentos da estátua do falso herói – empunhando sua espada em direção aos cães raivosos que surgiram de repente, não se sabe de onde. Daí em diante, Miguel não consegue ver mais nada, apenas ouve.
Atormentados pela sua condição de mortos-vivos, os cães uivam, babam e lambuzam a espada do falso herói com saliva de vampiro.
Logo em seguida chegam os espíritos vingadores dos escravos, que haviam sido cruelmente torturados e explorados em vida, pelo falso herói. A estátua dana-se a espetar os escravos com a espada contaminada. Um a um, todos vão sendo vacinados contra a morte – mas a saliva de vampiro não lhes traz de volta a vida plena. Como os cães raivosos, os escravos também vão sendo condenados, um a um, à condição de mortos-vivos.
Quando o pesado sino caiu por terra e foi desativado, o tempo parou em Hermópolis, interrompendo a trajetória de desenvolvimento econômico e social da cidade. Todavia, algo estranho se repete todos os domingos, no mesmo horário. As pessoas sensitivas revelam que continuam a ouvir badaladas que anunciam o fim da missa dominical, às nove horas da noite. O som das nove badaladas permaneceu para sempre no tempo e no espaço hermopolitano.
Terminada a missa, os fiéis se levantam e o falso herói começa a gritar:
– Saiam da minha igreja! Estou cansado de ser coadjuvante de Deus!
Dizem que o falso herói mandou construir a igreja para abrigar o seu mausoléu e de seus vassalos mortos-vivos. Dizem também que o caixão do falso herói contém areia trazida de Portugal”. Sem a terra portuguesa, que lhe dá força e poderes sobrenaturais, e sem sangue, trabalho e suor dos escravos africanos, nenhum falso herói prospera na colônia.
De repente, o falso herói volta a ficar imóvel, no seu pedestal. Confiantes, os fiéis que trajam “algodão com franjas de seda” apertam nas mãos os crucifixos que trazem pendurados no pescoço e marcham em direção à estátua. Os falsos fiéis da elite hermopolitana, trajando “seda com franjas de algodão”, finalmente se revelam e tentam impedi-los. Ao se aproximarem, os fiéis sentem forte bafo de cachaça e mel. Com paus e pedras, começam a destruir a estátua, exclamando:
– Bafomé! Bafomé!
Ouve-se um grito estridente, anunciando que alguém irá morrer. Os destroços da estátua juntam-se e plasmam enorme rasga-mortalha. A coruja alça um voo longo no escuro da noite. Espíritos inferiores dos cães raivosos e dos falsos fiéis com franjas de algodão seguem a coruja, que se dirige ao gelo eterno do “nono círculo do inferno”.
Já sem a presença da estátua maligna, os espíritos dos escravos, agora livres, dirigem-se à Igreja do Rosário dos Pretos, onde são bem recebidos e encontram a paz. Em estado de graça, todos os fiéis beijam seus crucifixos e voltam para casa na cidade finalmente abençoada.
Felizes em suas redes, Miguel, Faninha e Margarida sonham com tardes de domingo, coreto e tartarugas, pipoca e algodão doce, naquela praça que agora só existe em sua imaginação.
Enquanto rezava, Vó Branquinha dormiu em paz. E nunca mais acordou.
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