O escritor carioca José Castello, autor de vários livros publicados, lançou em 2010o romance RIBAMAR, bem recebido pelo público e pela crítica.
Logo que li o exemplar a mim destinado percebi que se tratava de um excelente livro de caráter introspectivo.
Trocamos então por e-mail as seguintes mensagens:
“Caro primo José Castello,
Recebi e li o romance RIBAMAR.
Fiquei muito sensibilizado por figurar no rol das pessoas a que você
presta agradecimentos na página inicial.
Pretendo reler o livro, que muito me impressionou pelo caráter introspectivo.
Embora RIBAMAR seja obra de ficção e não livro de viagens, verifiquei que os dias que você passou em Parnaíba em 2008 foram úteis no seu desenvolvimento.
Parabéns pelo grande livro.
Abraços,
Alcenor Candeira Filho.”
“Querido primo Alcenor,
Seus comentários me deixam muito feliz.
Sua presença na lista de agradecimentos é uma questão de justiça. Sua presença, sua companhia, seu apoio me ajudaram muito!
É,de fato, meu livro mais introspectivo.
Trabalhei duro nele durante quatro anos.
Basta dizer que, na semana seguinte ao lançamento, de tão exausto, caí doente, com crise de hipertensão.
Mas já me mediquei e já estou bom de novo!
Abraço grande do primo
José.”
O que Parnaíba tema ver com o livro RIBAMAR, prêmio Jabuti de 2011 na categoria romance? Respondo: muito, a ponto de o autor ter visitado a cidade em 2008(só tinha vindo a Parnaíba uma vez, em 1954, com dois anos de idade) com o propósito de colher informações e vivenciar emoções a partir do passado de seu pai José Ribamar Martins Castello Branco, personagem central do livro, nascido em União e que morou um bom tempo em Parnaíba.
Nos poucos dias de permanência do escritor em Parnaíba, eu e meu irmão Carlos José, que conhecíamos bem Ribamar Castello Branco, nosso querido tio Dedé como o chamávamos, conversamos muito com José Castello e juntos visitamos todo o centro histórico: o Porto das Barcas, a bicentenária igreja de Nossa Senhora da Graça, a Casa Grande de Simplício Dias, o Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Parnaíba e outros lugares. E ainda estivemos rapidamente numa das praias de nosso litoral.
Num encontro em minha residência mostrei-lhe algumas relíquias de família( todas viriam a ser mencionadas no livro): meia dúzia de poemas de seu avô Lívio Ferreira Castelo Branco publicados no ALMANAQUE DA PARNAÍBA nos anos 20, fotografias tiradas em 1954 quando José Castello visitou Parnaíba em companhia dos pais e irmã e um dicionário de dois volumes – – DICCIONÁRO DA LÍNGUA PORTUGUEZA -, de J. I. Roquette,editado em Paris em 1848 e que pertenceu a seu bisavô Manoel Thomás Ferreira, que apôs a sua assinatura à página inicial com a data de 1872. Esse dicionário, que até hoje conservo com muito zelo (dei de presente a J. C. um dos volumes),é mencionado mais de uma vez no romance , com autor e título fictícios.
Uma das fotos, – em que aparecem o escritor com dois anos de idade, seu pai, sua mãe e sua irmã mais velha, – é tão reveladora que foi evidenciada no livro. Examinando atentamente o velho retrato , o escritor descobre que já existia ali o conflito entre pai e filho:
“A fotografia está fosca, as cores fraquejam, as imagens se dissolvem. Ainda assim, ela lateja em minhas mãos. Emite outro tipo de luz: aquela em que o passado resiste, como um destino.
Aos dois anos de idade, magro e desconfiado, já sou o estranho que você conheceu e de quem se afastou. Está tudo ali, para que mais? Para que escrever um livro?” (págs. 163/164).
RIBAMAR é uma fusão de ficção (romance) e de memórias biográficas que focaliza o conturbado relacionamento entre pai e filho, ou como assinalou Milton Ribeiro:
“Romance muitíssimo autobiográfico , romance que é uma mistura entre ficção, memória, autobiografia e biografia do pai.
RIBAMAR é José Ribamar Martins Castello Branco, pai do escritor, e o livro é uma dolorosa aproximação do filho ao pai morto.”
Essa penosa busca de reconciliação através de um mergulho no passado do falecido pai é que levou José Castello a vir a Parnaíba, trazendo o “projeto insano” de recuperar o passado do pai, “uma loucura, uma estupidez um livro” (p. 47), não um livro “sobre” o pai, mas um livro “através” do pai (p. 136).
A falta de sintonia entre pai e filho, principal fio condutor da narrativa em análise, já existia entre pai e avô do autor, Lívio Ferreira Castelo Branco, apontado no romance como intelectual medíocre não só pelo neto escritor mas também pelo próprio filho Ribamar, que declara ao entregar a José Castello um velho caderno com poemas publicados na imprensa de Parnaíba nos anos 20: “São bobagens de meu pai. Por mim, vão para o lixo” (p.119).
Quer dizer, o autor se vê de repente diante de uma herança maldita, “diante de uma duplicação. Mais uma. Um segundo abismo, agora entre você e seu pai, repete o desfiladeiro que nos separa. Um destino grafado no sangue, uma herança genética – algo de que não conseguimos escapar” (p. 119).
Desconhecendo o fato acima, aqui em Parnaíba mostrei a José Castello uns poemas de seu avô, e ele de forma direta, curta e grossa como se diz no Piauí: “péssimo poeta, já sabia disso desde criança, quando meu pai me entregou velhos papéis com poemas do vovô Lívio, com a recomendação de que os jogasse no lixo.”
O duro e azedo julgamento do neto sobre os escritos do avô paterno se manifesta ostensivamente em várias páginas do livro:
“Não me interesso pelos sonetos de meu avô, pomposos, com rimas odiosas, estúpidas exaltações de civismo. Um deles se chama “Progressos”, mas a linguagem do passado destrói tudo” (p. 120).
“Dois pseudônimos: João do Mato e Sabino Ferreira.
Dois mantos que meu avô (…) usou para se esconder. Suas crônicas na imprensa, assinadas com os nomes falsos eram medíocres.” (p. 267).
Essa história de pseudônimos usados pelo avô do romancista não é ficção, como prova o ALMANAQUE DA PARNAÍBA de 1929, que registra o falecimento de Lívio em 05.02.1929 durante um baile de carnaval no Cassino 24 de Janeiro e traça-lhe o perfil moral, político e intelectual, ressaltando ter sido ele ”como literato, um poeta espontâneo e gracioso”, que “com os apelativos de João do Mato e Sabino Ferreira deixou crônicas que marcaram época no nosso meio intelectual.”
Confesso que as opiniões críticas apresentadas no romance RIBAMAR, embora sinceras e verdadeiras, me fizeram ter pena de meu bisavô Lívio, que sempre considerei um poeta tolerável para leitores de boa vontade e que indiquei para a cadeira nº28 da Academia Parnaibana de Letras.
Algumas pessoas da família Castelo Branco não gostaram do premiado romance, achando-o amargo e ofensivo ao pai do autor e à família. Atribuo esse julgamento, com o qual não concordo por entender que das 278 páginas do livro o personagem central sai é engrandecido, a uma impressão apressada e superficial de leitura .
Também foi vítima desse mal entendido familiar o publicitário e escritor Renato Castelo Branco por causa de seu romance TEODORO BICANCA, em que
“confundiu-se um tipo sociológico genérico, o Coronel, fruto de um quadro histórico, com a pessoa de meu tio (coronel Belarmino Pires). Isto provocou, naturalmente, um grande mal-estar em minha família e uma grande mágoa para mim.
Por esta razão, nunca permiti que fosse feita nova edição de TEODORO BICANCA, livro premiado pelo Círculo Literário Brasileiro e que figurou, por algum tempo, entre os best-sellers de sua época” (TOMEI UM ITA NO NORTE, p. 50).
No Salão do Livro do Piauí – SALIPI , em 2011 ou 20012, fui a Teresina para ouvir a palestra de José Castello sobre o romance RIBAMAR. Após a palestra e com a palavra dirigi-me ao palestrante não com uma pergunta como seria natural, mas com um depoimento que talvez naquele momento só eu pudesse dar entre os presentes. Reportei-me ao fato de que alguns membros da família Castelo Branco detestaram o romance. E como parente e sobretudo como conhecedor de pai e filho, concluí: “Acho que RIBAMAR é o tipo de romance de que eu como pai e personagem muito me orgulharia.”
No livro INVENTÁRIO DAS SOMBRAS, José Castello conta que no Rio de Janeiro, novembro de 1974, vinte e três anos de idade, enviou um conto para Clarice Lispector, com endereço e telefone juntos na esperança de que ela viesse a retornar. Passado um bom tempo de silêncio, eis que “o telefone toca e uma voz arranhada, grave, se identifica: ‘Clarrrice Lispectorrr’, diz. Ela entra logo no assunto: ‘Estou ligando para falar de teu conto’, continua (…) ‘Só tenho uma coisa para dizer: você é um homem muito medrrroso (…). E com medo ninguém consegue escrever’” (p. 19). Que grande conselho!
É provável que RIBAMAR seja o tipo de livro de ficção que Clarice Lispector gostaria que José Castello escrevesse. Nele ou através dele percebe-se que o autor realizou uma grande obra porque a escreveu após libertar-se das amarras do medo a que se refere a autora de LAÇOS DE FAMÍLIA.
A exemplo de Mário de Andrade, que, à falta de melhor classificação para a extraordinária obra MACUNAÍMA, chamou-a de rapsódia, José Castello classifica seu livro como romance, “porque não sei o que ele é”, conforme declarou na dedicatória do exemplar a mim destinado. Transcrevo toda a dedicatória por ser bastante esclarecedora do que pensa o escritor sobre a própria obra em que trabalhou exaustivamente durante quatro anos:
Querido Alcenor,
Curitiba, 15-set.-10
Vai aqui o livro que consegui escrever. Não procure a verdade nele, porque ela só aparece de forma esmaecida.
Não é uma biografia, não é um ensaio, não é uma confissão, não é um livro de viagens.
Eu o chamo de‘romance’ porque não sei o que ele é.
Você aparece escondido na figura do tio Antônio.
Minha gratidão.
José Castello”
RIBAMAR é uma obra fortemente influenciada pelo escritor tcheco Franz Kafka, como se vê nas páginas iniciais: “Meu mal tem uma origem precisa: sou obcecado por Franz Kafka. Não que eu o inveje ou deseje ser como ele. Também não o odeio e, com algum esforço, reconheço sua grandeza. Meu problema é que não consigo parar de pensar em KAFKA” (P.11).
O livro de Kafka tão presente no romance não é o mais famoso dos que escreveu – METAMORFOSE – mas talvez o mais profundo de todos – CARTAS AO PAI – que Ribamar no Dia dos Pais do ano de 1973 recebeu com esta dedicatória: “Para o papai com um beijo e o amor do filho José” (p.21).
Assim como o pai do genial escritor tcheco jamais leu a CARTA AO PAI, “livro que, refém do medo , Franz preferiu entregar à mãe , Julie, e não ao pai “ (P. 22/23), também o exemplar dessa carta adquirida, por acaso, numa papelaria de Copacabana e dado pelo filho ao pai no Dia dos Pais nunca foi lida, tende sido encontrada muito tempo depois num sebo do Rio de Janeiro.
E como as cartas que não chegam a seu destino são as “que se perpetuam” (p.276) , na hora de deixar Parnaíba e de fechar as malas, pagar a conta do hotel e voltar par casa, o escritor fecha o grande romance:
“Antes de pegar a estrada, preciso passar no correio.
Tenho uma carta a despachar. Esta carta, a você, Ribamar, meu pai. A atendente me olha perplexa: ‘Falta o endereço’.
Eu respondo: ‘Ponha aí um destino qualquer’”(p. 278).
Encerro este trabalho declarando que Ribamar é um dos melhores romances psicológicos que já li ao longo de minha vida.
Parnaíba, outubro de 2015.
Por: Alcenor Candeira