O SORRISO DO DEFUNTO

 

Vitor de Athayde Couto

No velório, o defunto parece feliz. Assustados, os presentes se perguntam o porquê daquele sorriso misterioso. Depois de muita especulação, a viúva, muito aborrecida, cochicha no ouvido de sua comadre uma informação que acabou circulando por toda a sala, em meio a cafezinhos e ao som mastigado de bolacha pocazói, petinha, avoador e merdinha crocante. Só não havia pão de queijo porque o defunto havia proibido isso, ainda em vida. Ele era piloto de avião e não suportava aeroporto com cheiro de pão de queijo.

– Eita, e o que terá dito a pobre viúva? – pergunta, curioso, um parente muito próximo, recém-chegado de muito longe, e outro parente logo responde:

– A viúva disse que, em vida, o defunto usava uma dentadura. O problema é que o preparador da funerária não conseguiu colocar a chapa corretamente. Os dentes acabaram ficando do lado de fora da boca, que já estava rígida, e nunca mais se fechou. Assim, o defunto permaneceu sorrindo por toda a eternidade.

Naquele momento, um português muito doidão, velho parça do defunto, grita bem alto:

– Toca Raul!

– Por quê? – pergunta um vizinho, e o parça responde:

– Não estás a percebêire, ô pá? Depois que fecham o caixão, os que chegam atrasados só podem ver, através do vidro, “a boca escancarada e cheia de dentes, a esperar a morte chegáire” (ouve aqui).

– Esperando a morte? Mas ele já não está morto?

– Quem sabe, vizinho, vais sabêire. Tens que perguntáire aos coveiros. Eles já viram de tudo e mais um bocadinho nesta vida.

– E na morte também? Haha!

– Pois. É como dizia lá o Fernando Pessoa da Dinamarca, sempre a segurar um crânio com a mão direita: só os coveiros sabem que há mais mistérios entre a vida e a morte do que sonha a nossa vã hipocrisia.

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Ouça o áudio com a narração do autor:

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