ONU quer combater saque de propriedade intelectual tradicional
É comum grandes companhias lucrarem com o saber tradicional e recursos genéticos de países em desenvolvimento e povos indígenas, sem deixar compensação; instrumento legal internacional pode mudar o jogo.
Entre 13 e 24 de maio de 2024, realiza-se em Genebra, Suíça, uma conferência diplomática para estabelecer um instrumento legal internacional visando “intensificar a eficácia, transparência e qualidade do sistema de patentes”. A cidade suíça é sede da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Wipo, na sigla em inglês). Esse conceito se refere à proteção legal e direitos sobre bens produzidos mentalmente, como invenções, arte e escritos.
Segundo essa agência das Nações Unidas, o instrumento planejado terá o fim de “evitar que patentes sejam concedidas erroneamente para invenções nem novas nem inventivas, relativas a recursos genéticos e saber tradicional associado a eles”.
Há mais de 25 anos, países em desenvolvimento e povos indígenas vêm pressionando por leis de propriedade intelectual que protejam melhor, da exploração por terceiros, a flora, a fauna, saberes tradicionais e herança cultural locais. Mais recentemente, porém, tem crescido o clamor para que se responsabilizem as companhias que cometem esse tipo de abuso.
Marcas de moda têm sido advertidas por imitar padrões têxteis tradicionais em sua produção, assim como companhias farmacêuticas por transformar plantas medicinais em medicamentos comercializados. É o que os críticos denominam apropriação cultural, ou, quando se trata de uso de recursos genéticos, biopirataria.
Perda das heranças nacionais tradicionais
É conhecimento “que não se enquadra realmente no sistema de propriedade intelectual existente, como o de patentes ou de direito autoral”, explica Wend Wendland, diretor de Saber Tradicional, Recursos Genéticos e Expressões Culturais Tradicionais da Wipo.
A discussão sobre proteção legal nesse campo iniciou-se em 1995, com o estabelecimento da Organização Mundial de Comércio (OMC), a qual criou um novo conjunto de padrões internacionais de direitos de propriedade intelectual, a ser implementado por todos os seus Estados-membros.
No processo de transição, a Índia, por exemplo, descobriu que diversos países – sobretudo industrializados, como os Estados Unidos – estavam patenteando produtos que há séculos eram parte das práticas tradicionais locais. Na Etiópia, o grão Eragrostis tef é cultivado há milhares de anos. No entanto, uma companhia holandesa detém a patente sobre o cereal processado.
Viswajanani Sattigeri, diretora da Biblioteca Digital de Saberes Tradicionais (TKDL) da Índia, enumera casos como o uso da cúrcuma para curar feridas ou as propriedades fungicidas do arroz basmati. Ela explica que, quando terceiros obtêm a patente para um determinado procedimento, eles se tornam seus proprietários, e “a nação perde sua própria herança e seu próprio saber tradicional”.
Novo paradigma na proteção dos bens imateriais
Nesse sentido, o encontro dos 193 Estados-membros da Wipo, este mês, promete ser uma guinada: a intenção é ratificar a primeira fase de um instrumento legal para proteger mais fortemente os patrimônios tradicionais. A organização os dividiu em três áreas consideradas vulneráveis sob o sistema atual: recursos genéticos, e saber e expressão cultural tradicionais.
O saber tradicional engloba informação transmitida de geração a geração, dentro das comunidades, geralmente por via oral. Ele pode se referir à biodiversidade, alimentos, agricultura ou cuidados de saúde, entre outros. As expressões culturais incluem criações artísticas refletindo a herança e a identidade de um grupo, como música, artes plásticas ou design.
Segundo o professor alemão de direito de propriedade intelectual Tim Dornis, essa abordagem “muda a concepção clássica” sobre esse campo jurídico, e “pode quebrar o sistema segundo o qual muitas coisas ficam desprotegidas”.
Na atual legislação de propriedade intelectual, a proteção legal para criações originais tende a caducar após determinado período. Porém, muitas práticas tradicionais se desenvolveram e foram transmitidas ao longo de séculos ou mais. Não há tampouco um inventor a quem dar o crédito: o conhecimento é detido de forma comunal, sendo difícil até rastreá-lo a um grupo ou região específicos.
Países industriais se apossam do saber sem remunerá-lo
Por isso fica relativamente fácil terceiros obterem o saber da comunidade, retornarem a seus países, solicitarem patente com base no que aprenderam e lucrarem com ela. Segundo Dornis, isso permite aos países desenvolvidos se apossarem dos bens imateriais alheios sem dar nada em troca. Enquanto isso, a invenção farmacêutica ou produto medicinal baseados neles são protegidos por patente e têm que ser pagos.
O encontro este mês em Genebra se concentrará exclusivamente nos recursos genéticos contidos em materiais biológicos, como plantas e animais. Caso seja aprovado o instrumento legal pertinente, membros do Wipo que requeiram patente ficam obrigados a revelar a origem do organismo ou saber associado, e se têm permissão para usá-lo.
O projeto de lei prevê ainda a formação de bancos de dados onde essas informações sejam encontradas com facilidade – como a TKDL, que Sattigeri dirige. Para cria-la, ela passou décadas transcrevendo textos tradicionais indianos, parte em sânscrito. “Focamos nos sistemas indianos de medicina ayurveda e unani, assim como nas várias práticas de ioga. Havia ainda informações abundantes relativas à saúde, também animal e vegetal, e cosméticos”.
Se o acordo sobre recursos genéticos for aprovado, o foco da Wipo passará ao estabelecimento de definições mais claras para as outras duas categorias: saber e expressão cultural tradicionais.
Wend Wendland afirma que para muitas comunidades nacionais essa regulamentação seria “um importante passo avante”. “É muito técnico, mas tem uma história longa e muito simbolismo para diversos países, em especial aqueles em desenvolvimento.”
Fonte: Cultura