PASTOR NÃO VOA COM PILOTO DE COTA

 

Vitor de Athayde Couto

 

Quando alguém diz que trata todos os filhos por igual, eu não acredito. Isso não existe nem nos textos religiosos, qualquer que seja a sua origem. Meu vizinho tem muitos filhos. Ele me diz que sempre tem um preferido. Diz também que as suas preferências mudam, conforme as circunstâncias. Ora é a filha mais velha, ora o mais novo, as filhas do meio… E assim os filhos vão se revezando no pódio do seu coração de pai.

 

Ao observar e conversar com outras famílias, encontrei uma verdade: só os filhos com necessidades especiais permanecem mais tempo nos degraus superiores do pódio – embora isso seja contra a Natureza, no seu conceito mais geral. A “natureza humana” é apenas uma abstração, uma construção social. Não me cabe aqui discutir se os animais lêem bíblias, corões ou torás. Mas os filhotes que não podem lutar, caçar ou fugir dos predadores são logo eliminados para garantir a sobrevivência do restante do grupo. Não é maldade. Não é bondade. Muito menos falta de amor. É apenas instinto. Mas não é só instintiva a atitude de certas famílias acorrentarem parentes que não se enquadram no “normal”. Na falta de um Estado decente e atuante, a iniciativa pode ser apenas desespero movido pela extrema necessidade. Sem as correntes, os “normais” não podem sair para trabalhar para sobreviver, valorizar o capital, e cumprir a lei do mais rico.

 

Na sala de aula é a mesma coisa. Quando tento quase em vão (felizmente há exceções) convencer estudantes da importância de se exercitar, ler, debater, enfim, de estudar, eu construo uma tipologia mental. Desde o primeiro dia de aula, com pequena margem de erro que se desfaz com o tempo, já dá para identificar quem quer alguma coisa e quem “não quer nada” – ou quer outra coisa que eu desconheço e não consigo perceber. Sendo todos adultos (com crianças e adolescentes é outra história), logo se formam dois grupos distintos na minha mente. Posso chamá-los grupo W e grupo K.

 

Embora existam professores universitários que dizem tratar todos os seus alunos “por igual”, gosto muito do exercício construtivista da classificação (quem não gosta de classificar é melhor esquecer a ciência). Isso me ajuda a vencer preconceitos que trago (e todos nós trazemos) desde que nascemos – considerando que ninguém é criado por anjos. Mesmo assim, sugiro não confiar neles (ou nelas, a depender do sexo dos anjos). Mas esta é outra discussão da qual estou fora. Prefiro discutir ovos ou galinhas. É mais complexo, pois contempla a noção de infinito. Além de ser muito divertido.

 

Já vi colegas disputando para trabalhar com turmas pequenas. Eu prefiro as salas cheias, onde é mais provável encontrar maior diversidade em cada grupo W e K. Construindo tipologias, observo que: a) ninguém é mais ou menos interessado no curso por ser branco ou negro; b) ninguém é mais ou menos inteligente por ser LGBT ou QI+; e c) ninguém tem melhor ou pior desempenho só porque entrou na Universidade através do sistema de cotas. Ouvi professores dizerem: “eu só dou aula pro grupo W”. Outros chamam atenção do aluno negro, lembrando que “no mercado de trabalho não tem cotas”, etc.

 

O título desta crônica encabeçou uma das muitas notícias esquisitas de julho: “Pastor, tio de Damares, não viaja em avião com piloto de cota”. Nessas circunstâncias, talvez ele prefira viajar na arca de Noé – o conhecido patriarca que inventou a carraspana, e salvou os animais do comunismo. Sendo ou não preconceito, isso já dá motivo para um amplo debate. Mas, ao ler a notícia, fui atraído principalmente pelo seu lado cômico e muito divertido. Sim, aviões caem. Mesmo assim, as pessoas continuam a voar. Eu, que viajo de avião desde os cinco anos de idade, pensei: se um pastor não confia em Deus e tem medo de avião, imagine quem nunca leu bíblias, corões e torás. Ou, então, de tanto ler, acabou convencido de que o inferno existe. E quem tem inferno tem medo até de Ozônio. Alguém pode até achar que o tiozão é um pastor de cota. Eu não acho. Mas a tragédia é geral. Vallêymmy!