QUARTA MALDIÇÃO: O CORETO

 

Vitor de Athayde Couto

– Num tempo, antes da invasão dos pardais, a praça era agradável. Não havia drogados nem moradores. A charanga municipal, também conhecida como “a furiosa”, tocava dobrados no coreto onde, um dia, fora exibida a imagem de Nossa Senhora de Fátima, vinda diretamente de Portugal. Os hermopolitanos ficaram muito orgulhosos. Hermópolis foi uma das primeiras cidades brasileiras a receber a imagem milagrosa.

– Milagrosa, vovó?

– Sim, Estefânia, milagrosa, sim. Eu mesma vi um aleijado que, mal tocou a imagem, começou a andar. Vi uma criança parar de tossir, vi surdo ouvir, cego enxergar… Só não vi crescer cabelo em cabeça de careca, nem barrigudo virar tanquinho. Esses milagres só acontecem nas propagandas de laboratórios de remédios e academias. Tampouco vi gente se livrar de boletos. A santa não veio ao Brasil pra pagar dívidas de ninguém. Se fosse assim, ela não teria mais nada pra fazer, ficando presa em Hermópolis, onde caloteiros é o que não falta.

– Então, cadê o coreto, vovó? Onde fica? – perguntaram os netinhos.

Vó Branquinha permaneceu calada, enquanto enxugava uma lágrima teimosa.

– O que aconteceu com o coreto, vovó? – perguntou Margarida, desconfiada.

– Adivinhe, minha filha – disse a vovó, demonstrando profunda tristeza.

– O coreto também foi demolido? – perguntaram, surpresos.

– Infelizmente, sim, Margarida. Essa é a quarta maldição. Demolir coisas belas é a especialidade de certos prefeitos. Mas, depois, eles pintam os meios-fios de branco e todo mundo fica feliz, desde que haja festa, mistura e cachaça. Ah, ia esquecendo, e um som bem alto, desses que eles chamam de “música”.

– Como era o coreto, vovó? Conte pra nós, por favor!

– Ah, o coreto! O coreto era lindo e redondo. O piso era vermelho, de cimento afagado. Os peitoris de proteção, para que as crianças não caíssem lá de cima, eram feitos de canos robustos pintados de verde. Vermelho e verde são as cores de Portugal, pátria de Nossa Senhora de Fátima – se é que a Virgem Maria liga pra esse negócio de pátria, duvido muito. Quando eu tinha 12 anos, assisti, no coreto, a um concurso de bandas. Vinham filarmônicas de todas as cidades do entorno de Hermópolis. Os músicos chegavam bem formados, trajando uniforme azul – a cor oficial da cidade. Tocavam de um tudo, mas a queridinha do público era o dobrado “Dorinha, meu amor” – ouça aqui.

– E depois do concurso, vovó? O coreto servia pra quê?

– Comícios, por exemplo. Durante o dia, as crianças brincavam no coreto. Nas tardes de domingo, antes da missa na igreja matriz, a furiosa e outras bandas tocavam em retretas. Eu gostava mais das bandas de fora, porque a furiosa local só tocava hinos e marchas militares horrorosas, dessas que falam em matar o inimigo. Não sei se era engraçado ou assustador quando os atiradores cantavam o hino do exército. Eram só garotos, marchando atrás da furiosa, empunhando velhos fuzis azeitados com perfeição. Parecia que iam lutar na guerra, mas ninguém nunca soube contra quem. Infelizmente faz muito tempo, tempo em que a pátria era amada e confiava em todos eles, quando cantavam assim: “Avante, camaradas / que em todos nós a pátria confia…” Resta saber se a pátria continua amada e se ainda confia neles. Será? – ouça aqui.

(Continua na próxima sexta-feira)

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