“Minha ciranda não é minha só, ela é de todos nós”. Assim conta, canta e encanta Lia de Itamaracá, dançarina, cantora e compositora da ciranda brasileira. O que esse encanto da canção Minha Ciranda, de Lia, tem a ver com a vida das mulheres marisqueiras da Ilha Grande do Piauí, no Delta do Parnaíba? Justamente: o cantar, o contar e o Encantar. Quando Lia canta sua Ciranda, nós, os brincantes, somos envolvidos por sentimentos de ternura, afeto, comunhão, solidariedade… HUMANIDADE. Da mesma forma, ao abrir suas portas para nos contar sobre suas vidas, essas marisqueiras nos encantam com suas histórias, afazeres, realidades e formas de vida.

Os saberes e fazeres construídos no cotidiano dessas mulheres e seus conhecimentos tradicionais nos mostram uma relação de cuidado e respeito pelo mangue na mesma intensidade que têm pela sua família, seu espaço doméstico ou sua comunidade. Tais vivências merecem ser valorizadas, compartilhadas e visibilizadas, pois são verdadeiros processos de ensino/aprendizagem para quem quiser entrar na roda.

 

Foi com essa perspectiva que o Fundo Socioambiental Casa, o Fundo Casa Emergencial e a Fundação SOS Mata Atlantica aceitaram o convite da Associação dos Catadores de Marisco da Ilha Grande do Piauí para apoiar projetos que proporcionem às marisqueiras, fortalecimento e sustentabilidade em suas atividades produtivas.

O ano foi desafiador, mas a resiliência também está forte

 

Em 2020, terrível ano da pandemia de Covid-19, que trouxe para o mundo, para o Brasil e para as marisqueiras do Delta do Parnaíba, gigantescas dificuldades para a luta cotidiana pela sobrevivência, o projeto AMEAS – Articulação de Mulheres Empoderadas em Atividades Sustentáveis possibilitou às marisqueiras o isolamento social físico sem deixar de lado o acolhimento, o cuidado e a sororidade próprias de suas vidas. Levando melhorias de conexão de internet, o projeto permitiu que continuassem compartilhando suas vivências através de lives, que foram verdadeiras rodas de conversas sobre os mais variados assuntos. Para a marisqueira Luiza dos Santos, apesar da situação ter ficado difícil, a associação das marisqueiras conseguiu o projeto que trouxe uma internet melhor: “durante todo o ano, a gente pode ouvir pessoas de lugares longe daqui e pode conversar entre nós também. Tudo o que fizemos animou a gente porque não ficamos sozinhas em casa”, diz a marisqueira.

 

Infelizmente, o primeiro mês de 2021 mostra que a pandemia ainda não está controlada em nosso país. E tudo indica que a vacina pode demorar para chegar à população. Pelo menos nesse primeiro semestre do ano, as medidas de segurança sanitária devem ser mantidas. Daí, a necessidade de continuar o apoio das instituições parceiras e, com ele, continuar com criatividade e segurança sanitária as ações de fortalecimento da segurança alimentar, acolhimento comunitário e geração de renda.

Na perspectiva da promoção da saúde, a ação junto aos quintais produtivos das marisqueiras, conhecidos pela diversidade de espécies, cores e sabores, terá como base a produção agroecológica de hortaliças e plantas medicinais e frutíferas. As atividades começam pelos preparativos do solo com adubação orgânica, a partir dos resíduos alimentares domésticos, passa pelo fomento à produção e, então, ao compartilhamento e troca de adubo, mudas e sementes.

 

2021, o ano tá apenas começando

As atividades tiveram início no mês de janeiro e o primeiro levantamento das espécies a serem fortalecidas em seus plantios pelas 17 marisqueiras participantes identificaram alface, rúcula, salsinha, coentro, cebolinha, couve, três variedades de pimentinhas, cenoura, duas variedades de pimentão, berinjela, pepino, abobrinha, mamão, melância, tomate e tomate cereja. Quanto aos adubos, as participantes garantem que conseguirão produzir mais de 45 sacos a serem compartilhados entre elas.

 

Para as marisqueiras, impossível é esconder o entusiasmo pelo início dos plantios. A marisqueira Maria do Socorro Nascimento Barros conta que além de hortaliças, ela cultiva “hortelã e erva cidreira que são bons para enfrentar doenças como essa que tá por aí”. Animada, diz que com “a ajuda da técnica” que vai receber para os seus canteiros, “as plantas vão melhorar” e informa que já tem cliente para sua hortelã: “uma amiga da minha irmã que trabalha na prefeitura já encomendou cinco mudas”, comemora.

 

Dona Maria Aparecida Reis também está animada com o apoio do técnico e disse que aumentando o plantio “aumenta as vendas na feirinha e isso ajuda a aumentar a renda”. Mas, para ela, o importante é que melhora o alimento da família: “a gente come um alimento saudável, que é da gente mesmo, pega no canteiro do quintal, vai tirando e vai comendo”, explica, esclarecendo que sua produção traz saúde não só para o corpo: “Plantar é tão bom! Faz um bem danado pra alma amanhecer o dia, aguar aquelas plantas que estão ali, crescendo, coisa mais linda!! uma cebola, um cheiro verde, um tomatesinho, pimentãozinho, tudo ali, e o couve… Pra mim é muito importante por isso, tanto pra comer como pra viver feliz”.

 

A “feirinha” que dona Aparecida se refere é a Feira de Artesanato e Produtos da Agricultura Familiar (FAPAF), que antes da pandemia acontecia no pátio da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), e que vem acontecendo virtualmente com divulgação nas redes sociais em virtude do necessário isolamento social, através da divulgação dos produtos das marisqueiras. Um dos objetivos da ação dos Quintais Produtivos é fortalecer a FAPAF.

 

Os desafios não barram os ânimos

Uma das dificuldades que as marisqueiras apontaram e que desafia o projeto é a arenosidade do solo. Dona Socorro Nogueira diz que onde mora, no bairro Baixão, “o chão é de muita areia e a água vai toda embora quando a gente ‘agoa’. Tem outras dificuldades, mas essa da areia é muito difícil porque a água é pouca também”, afirma. Mas, aposta na produção de adubo orgânico: “acho que com isso aí pode dar certo, as plantas vão gostar. E eu também!”, diz sorrindo e convidando quem quiser ajudar “que entre na roda também, a gente precisa conversar mais. Aqui, a gente pode beber um suco e conversar sobre o que se pode ajudar. Porque ajuda sempre precisa e é bem vinda”, conclama.

 

As “ajudas” que dona Socorro aponta, também, são apontadas pelas colegas. Joelma dos Santos, uma das marisqueiras mais jovens e presidente da Associação está animada com a atividade porque percebe um compartilhamento de saberes: “esse trabalho é muito bom porque a gente sabe de algumas coisas e os técnicos sabem outras. O Marquinho vindo, ele tem as técnicas que a gente não tem. Tipo, um fungo que tá dando em uma folha, ele já fala como é que a gente pode proteger aquela folha, qual é o tipo melhor de adubo pra plantação, que tipo de plantação é melhor aqui ou ali. E orientar as meninas tá sendo muito bom”, explica com entusiasmo.

 

O Marquinho que Joelma se refere é biólogo, estudante de agroecologia do Instituto Federal do Piauí e educador da Escola Família Agrícola de Ibiapaba, no Ceará, Marcos Vieira Filho. É um dos técnicos/educadores que está assessorando e animando as marisqueiras na atividade de valorização e fortalecimento dos seus quintais produtivos. Para ele, o que “chama a atenção é como estas mulheres estão sempre dispostas a novos desafios, reorganizando suas rotinas da mariscagem, da feira agroecológica, dos afazeres domésticos, para participarem dos encontros, rodas de conversa e oficinas virtuais e agora, do Projeto Quintais Produtivos”, explica admirado com “toda essa energia e disposição, que é sempre um fator motivador para todos que contribuem na construção e no desenvolvimento desse projeto. O compartilhamento de saberes faz com que se formem elos e que o projeto seja um grande laço. Nesse laço, todos que estão dentro, aprendem e ensinam, seja produtor, cliente, família, comunidade ou parceiros, e se envolvem na construção do bem-comum. Estão todos e todas envoltos em uma verdadeira ciranda agroecológica”.

 

Para além dos espaços geográficos

Marquinho, demonstra sentimentos de pertencimento e de “brincante” dessa ciranda agroecológica porque entende, justamente, que a “importância em contribuir com os ‘Quintais Produtivos’ está, inicialmente, em poder compartilhar saberes agroecológicos com as mulheres marisqueiras e produtoras locais, assim como em participar da busca pela consolidação da soberania alimentar, através da produção de alimentos saudáveis que levam saúde à mesa das pessoas”, explica extasiado. E continua enaltecendo o valor das mulheres à frente das atividades. Diz que além de promover saúde, a fortaleza do processo “está em evidenciar o protagonismo feminino nas relações produtivas do campo e da cidade, sobre a participação destas mulheres na geração de renda e na manutenção da economia local, na região do Delta do Parnaíba”, pondera, em uma clara demonstração de que vida saudável também precisa ter o tecido social.

 

O biólogo defensor e praticante da agroecologia analisa que a configuração dos quintais produtivos, especialmente das populações tradicionais, e mais especialmente ainda, das marisqueiras do Delta do Parnaíba, “se configuram para além de apenas espaços geográficos para a produção de frutas e hortaliças. Mas, são espaços de resistência onde as mulheres marisqueiras e produtoras agroecológicas mantém suas tradições, conforme os aspectos culturais locais com suas espécies tradicionais, e ainda, com seus quintais, onde reafirmam sua posição contra o modelo do agronegócio”, rebate Marquinho, mostrando que VIDA real e legítima acontece na socio-biodiversidade existente nos ambientes locais, e não na monocultura que prima por apenas um conhecimento e persegue apenas o valor monetário dos recursos. “A vida real e legítima é muito mais que isso e acontece na magia da ciranda agroecológica”, conclui referindo-se a todos e todas que se ‘achegam’ e se afagam na “Ciranda de todos nós”.

 

A atividade de formento aos quintais produtivos pretende alcançar as produtoras integrantes da FAPAF dos bairros Vazantinha, da Ilha Grande de Santa Izabel, em Parnaíba, e Baixão, da Ilha Grande do Piuaí.

 

Por Lígia Kloster Apel