Religiões no Brasil, parte 2: CRISTAMBEIROS

 

Vitor de Athayde Couto

Madrugada de chuva fina. Vó Alika vai até o quarto de Ifé, que ainda dorme.

– Levanta, Fefé! Os santos te esperam!

Ifé se levanta e enrola o ojá na cabeça. Na cozinha, pega uma vela nova. Avó e neta abrem a porta que dá para o pequeno quintal e caminham devagar até o Peji. Na entrada da casinha dos santos, batem palmas, pedem licença e entram. Ifé faz as saudações habituais da manhã. À luz fraca da vela de sete dias, percebe o movimento de Musu, o gato guardião, idoso, de cor escura, que adotou o Peji como sua morada. Sorrateiro, Musu nunca desarruma os ebós.

Agora já se foram quase 20 anos de ritual sagrado. Musu e vó Alika só existem na memória e na saudade. Ifé acorda sozinha, cumpre as obrigações que a avó ensinou. Na cozinha, bebe um copo d’água, come banana-da-terra cozida, bolo de carimã, café preto e acaçá de milho branco enrolado em folha de bananeira.

Arrumada para o trabalho, retoma a leitura do relatório do censo das religiões. Os dados divulgados ainda são preliminares, mas não quer dizer incorretos. Os dados definitivos serão mais detalhados. Talvez com pequenos ajustes.

A maior proporção de analfabetos ocorre entre indígenas e católicos. Para os indígenas, isso é lógico e previsível. Povos mais ou menos isolados preservam a linguagem original. A alfabetização não tem nenhuma utilidade para as suas práticas religiosas baseadas na oralidade, com exceção dos catequizados. Porém, o que mais surpreende é a concentração de analfabetos entre católicos apostólicos romanos (7,8%). Analistas do IBGE atribuem esse fato à maior presença de pessoas idosas no meio católico.

As menores taxas de analfabetismo verificam-se entre os espíritas (1,0%) e umbandistas-candomblecistas (2,5%). Os espíritas detêm a maior proporção de nível superior completo (48,0%), seguidos pelos católicos (18,%).

A população de evangélicos, por ser a mais jovem, projeta grande crescimento no futuro. De 2010 a 2022, o seu número cresceu significativamente (5,2%), porém abaixo da expectativa dos técnicos, e bem distante do aumento do número de umbandistas e candomblecistas, que praticamente triplicou.

Ifé sabe que ter acesso a dados estatísticos oficiais e confiáveis é fundamental para se combater a intolerância religiosa e o preconceito. Não foram poucas as vezes que ouviu ameaças de vizinhos e até de colegas da universidade. Nos fins de semana, a cidade fica mais barulhenta, fedendo a mijo de cerveja e a carne vencida sapecada. Como gosto não se discute, nada desperta tanto ódio nos corações amargos quanto o cheiro da paz silente do incenso sagrado.

Infelizmente o IBGE ainda não oferece dados mais detalhados que permitam analisar a multirreligiosidade, os sincretismos e a mobilidade. Ifé observa que essa categoria tipicamente brasileira de cristambeiros (cristãos macumbeiros) nunca foi estudada. Por essa razão, ela já começa a formular, para a sua tese, algumas questões originais referentes ao que denomina “mobilidade religiosa não simultânea” no Brasil.

(CONTINUA)

_____________________________________________________

Ouça o áudio com a narração do autor: 

***

Caro leitor, tu também poderás ouvir este e outros textos, assistindo aos vídeos no canal YouTube do autor. Basta clicares aqui.