Afinal, “em que acreditamos”?
Ifé ainda era menina quando aprendeu com sua vó Alika o melhor caminho para descobrir “em que acreditamos”.
– A primeira coisa que tu deve fazer, fia, é sentar embaixo do Iroko e pensar, pensar com toda força do pensamento, até achar o que tu não acredita. Primeiro, tu separa o que tu pensa que acredita. Aí, tu joga fora tudo que tu não acredita. Depois, com o que sobrou, tu vê o que aproveita pra acreditar em. Assim, igual gente. É crer ou não crer. Sereis essa a minha questão, pois nunca se deve acreditar em todo mundo, né, fia?
– Nem nas coisas que a gente vê, vó?
– Nem, fia. A gente só deve acreditar naquilo que a gente sente, mesmo que os olhos não vejam. Se sentiu, então tu pode acreditar em.
“Acreditar em”, haha. Alika deu uma risada marota ao se lembrar do primeiro namorado. Ele falava assim, tudo ao contrário. Era um alemão muito educado, ex-aluno do Seminário de São Francisco. O seu nome era Karl. Aconselhado pelo seu orientador espiritual, o irmão Hildebrand, um dia, ele apareceu perto do nosso terreiro. Falava de revestrés, mas deu pra entender que ele fazia pesquisas sobre religiões. Foi numa segunda-feira, 26 de julho de 1948, dia de Nanã, que Karl e Alika se encontraram pela primeira vez embaixo do Iroko amarrado de três nós. Ali a menina cumpria suas obrigações. Estava enrolada apenas num lençol branco de morim novo que mal cobria as formas atraentes e furtivas do seu corpo adolescente.
Alika nem tinha 13 anos e sabia da vida. Era tudo que o futuro ex-seminarista precisava para ter uma inesquecível aula prática sobre o Dia da Criação, reafirmar a sua fé, e também desacreditar. Tudo ao mesmo tempo. O que ainda ensinam ser tentação do demônio, finalmente foi revelado ser apenas uma forma de alegria. Karl nunca tinha ouvido risadas como as de Alika – a quem ele chamava carinhosamente de Láica. Tampouco tinha visto dentes tão brancos, nem olhos tão brilhantes e alegres. Nos velhos templos, só ouvia sorrisos tristes e amarelos. Ninguém dançava. Os cânticos se arrastavam lentamente, movidos pelo cansaço da vida. Comidas e bebidas eram apenas símbolos de trigo e uva.
Os raios do Sol e a sombra do Iroko pintavam um claro-escuro, realçando o contraste do lençol branco que cobria a pele negra. Assim foi produzido o maior acervo de retratos em branco e preto sobre o candomblé, nos anos 1940, registrados com precisão por Karl, que manejava uma câmera Leika, a marca sueca das lentes mais famosas do mundo. Um dia, Karl desapareceu deixando dois legados: a filha, que vó Alika, já grávida, guardava carinhosamente no ventre livre, e um álbum de fotografias, creditadas a um “autor anônimo”, e que até hoje ilustram as publicações da fundação cultural.
O amor claro-escuro apagou da memória o estupro colonial. Não longe dali já se formava um povo afrogermânico de Cachoeira do Paraguacibes, sob a proteção luminosa de Nossa Senhora das Candeias.
(CONTINUA)
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