SEMANÁRIO JUÍRIDICO 22.04.2022

 

JOSINO RIBEIRO NETO

 

“RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NO ERRO MÉDICO.” – ANDREA BRAGA.

 

A Constituição Federal de 1988 determina que os três níveis de governo, União, Estado, Municípios e o Distrito Federal sejam os responsáveis pelo financiamento da saúde no Brasil, junto aos serviços públicos de saúde sob a égide do SUS.

 

A Lei 8080/90 também conhecida como lei do SUS, em seu Art. 1º. dispõe, verbis:

 

Art. 1º Esta lei regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito Público ou privado.

 

Esta lei chama para si a regulação de todo o Sistema Único de Saúde, tanto na esfera pública quanto na esfera privada.  A mesma Lei em seu Art. 2º expressa, verbis:

 

Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

 

No Art. 2º, caput, observa-se, com clareza, que o Estado é o responsável em promover todas as condições imprescindíveis para a realização do que classifica como direito fundamental à saúde. Como direito fundamental entendem-se direitos previstos na CF/88, em especial no seu art. 5º, inerentes à pessoa humana, de extrema importância, pois garantem a vida digna, dentre eles encontramos a liberdade e a saúde.

 

Em seu parágrafo 1º., o artigo 2º da Lei 8080/90 traz a universalidade, a igualdade e a integralidade (serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde) como características básicas da saúde pública (saúde que deveria ser promovida pelo Estado).

 

O ordenamento jurídico brasileiro garante a assistência à saúde, à todos, igualmente e em todos os níveis. Promovendo a busca por este direito por parte de todos os cidadãos, que não procuram exceções, mas apenas o que lhes é garantido por lei e expresso em vários diplomas do nosso aparato legal.

 

Encontra-se expresso no Art. 4º, a definição de SUS e sua relação com a iniciativa privada.

 

Art. 4º O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS).

§ 1º Estão incluídas no disposto neste artigo as instituições públicas federais, estaduais e municipais de controle de qualidade, pesquisa e produção de insumos, medicamentos, inclusive de sangue e hemoderivados, e de equipamentos para saúde.

§ 2º A iniciativa privada poderá participar do Sistema Único de Saúde (SUS), em caráter complementar.

 

No caput do Art. 4º, bem como em seu parágrafo 1º, a positivação do que é o SUS e o que ele inclui são claras, o que parece um paradoxo é o parágrafo 2º, ao facultar à iniciativa privada, participar do SUS “em caráter complementar”. Um sistema (SUS) que, já prevê a complementariedade de suas ações pela iniciativa privada, como vai saber o montante do valor que deverá alocar para a saúde? Conseguirá que a iniciativa privada pratique seus mesmos preços? Os empreendedores da iniciativa privada conseguem os mesmos preços de mercado dos insumos e equipamentos a que o SUS tem acesso?

 

Acreditar-se-á ser simples e de fácil fiscalização uma gestão deste sistema (SUS)?

 

Agência Câmara de Notícias traz informações muito importantes: O financiamento do SUS é um dos problemas a serem resolvidos. Apesar da promessa de atender a todos, o Brasil é um dos países que menos investe em saúde: menos de 490 dólares por habitante em 2012. “Não podemos manter o Sistema Único de Saúde com a missão para a qual ele foi criado com esse volume de recursos”, avalia a presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Ana Maria Costa.

 

Em 2000, a Emenda Constitucional 29 determinou que os municípios investissem em saúde pelo menos 15% do que arrecadam, e os estados, 12%. Já o governo federal deve investir, pelo menos, o mesmo valor do ano anterior reajustado pela inflação. Apesar de garantir investimentos mínimos, a regra não estimula o governo federal a fazer muito mais do que isso.

 

No Estado do Piauí, infelizmente, o investimento, legalmente previsto, de 12% para os Estados, não é obedecido, deixando médicos com precárias condições de trabalho e pacientes, muitas vezes, a mercê da própria sorte. Para confirmar esta afirmativa basta verificar o número de denúncias contra médicos no Poder Judiciário e no Ministério Público do Piauí bem com no Conselho Regional de Medicina do Estado do Piauí, quando exercendo a medicina em serviços de saúde públicos.

 

Para especialistas, no entanto, o problema da saúde no Brasil não é apenas de financiamento, mas também de gestão dos recursos. “Não há gestão qualificada. Há fraude, há corrupção. Isso precisa ser resolvido e se resolve com um gerenciamento competente e com um financiamento adequado”, defende o médico Roberto Luiz d’Ávila, ex-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM).

 

Mais do que os pacientes, quem se encontra gravemente enfermo no Brasil é o Sistema Único de Saúde, com problema de financiamento, de gestão, de capacitação de profissionais, de fornecimento de equipamentos e insumos, de salários extremamente defasados. Neste cenário caótico, difícil seria não existirem falhas e danos à pacientes e profissionais.

 

Ao não conseguir atendimento para doenças simples ou graves, para si ou para seus entes queridos, não é o Ministro da Saúde (ente federativo), nem o Secretário Estadual de Saúde (ente estatal) nem o Secretário Municipal de Saúde (município) muito menos o Presidente da Fundação Municipal de Saúde, que o paciente tem contato, é com o médico (quando consegue) que o paciente trava o embate na procura pela saúde. Infelizmente o médico que atende no serviço do SUS é obrigado a prestar atendimento, na grande maioria das vezes, em situações muito distantes das satisfatórias, mas é a ele que o paciente atribui todas as falhas no atendimento.

 

É sabido que o erro médico existe, como existem erros em todas as categorias profissionais, mas é muito pouco o que o médico pode fazer trabalhando em cargas horárias desumanas, tratando de vidas sem insumos, equipamentos e sem uma equipe multidisciplinar. A pequenez do salário do médico hoje em dia o obriga a trabalhar em vários lugares, não permite sua participação em congressos e cursos de atualização e aperfeiçoamento, nem lhe sobra tempo par dedicar-se ao estudo.

 

Diante desta triste realidade, o que se observa é o aumento cada vez maior de processos contra os médicos, em especial em desfavor de médicos que trabalham no SUS, julgados, em sua grande maioria, improcedentes. O que deve sempre estar em mente é se não é toda a precariedade existente no SUS, a verdadeira responsável pelos fatos. Devendo, então ser processado não o médico, mas o SUS.

 

Para que o médico seja considerado culpado faz-se necessária a comprovação da culpa, em uma de suas três formas: imperícia, imprudência e negligência, bem como dos pressupostos da responsabilidade civil: agente, dano e nexo causal. A falta de qualquer um destes critérios absolverá o médico nas denúncias em qualquer esfera: ético-administrativa, civil e penal.

 

Esta nociva realidade transforma a relação médico/paciente numa fonte de desconfiança e impessoalidade. O paciente não escolhe o médico nem as condições em que vai ser atendido, nem o médico escolhe o paciente que vai atender nem sob que condições. Quando existem, os demais profissionais da saúde também não ficam ilesos, padecem dos mesmos males que médicos e pacientes.

 

A medicina, diante deste cenário, apresenta duas faces que prejudicam o exercício profissional do médico, o tratamento dos doentes e oneram sobremaneira o já combalido sistema público de saúde, que são: a medicina defensiva positiva e a medicina defensiva negativa.

 

Na medicina defensiva positiva, o médico solicita mais exames do que os que seriam necessários, para se resguardar de eventuais demandas judiciais e na medicina defensiva negativa, o médico evita atender casos complexos ou complicados delegando para outros médicos tais casos.

 

À luz da ética, conclui-se que as consequências da medicina defensiva e seu conhecimento por parte dos pacientes tendem a dificultar ainda mais a relação médico-paciente, devido à redução na confiança do paciente em relação ao profissional. A dilatação do prazo para diagnosticar o problema e buscar a cura, além de punir o paciente que depende do Sistema Único de Saúde, aumenta substancialmente o custo do serviço de saúde, tanto em âmbito público quanto privado.

 

Pesquisas como a de Runciman B, Merry A, Walton M. Safety and ethics in healthcare: a guide to getting it right. Abingdon: CRC Press; 2017.  ressaltam que a associação entre sobrecarga de trabalho, falta de tempo para tarefas diárias, equipe reduzida e alto contingente de pessoas ávidas por atendimento eleva a probabilidade de ocorrer erro médico.

 

A falta de incentivo à mediação e conciliação na seara hospitalar também favorece a medicina defensiva, dado que o médico se sentiria mais protegido se cada instituição contasse com segmento interno para cuidar das relações com pacientes.

 

Em minha dissertação de mestrado pude comprovar que, no Piauí, os médicos mais denunciados por erro médico são os ginecologistas/obstetras em atuação no SUS. A grande maioria foi absolvida.

 

A responsabilidade civil das instituições públicas de saúde é objetiva, ou seja, independe da comprovação da culpa e deve ser avaliada sempre que alguma denúncia à prática médica nela ocorrida seja feita.

 

A responsabilidade é a sombra da obrigação, sendo civilmente responsável aquele que tinha a obrigação de fazer ou deixar de fazer algo.

 

O Estado (nas suas três esferas) tem sido o grande vilão nas falhas do sistema de saúde, devendo ser civilmente responsabilizado, cabe a ele, se condenado, entrar com uma ação de regresso contra o médico envolvido.

 

As denúncias infundadas contra o profissional médico causam graves prejuízos  ao setor saúde, bem como ao judiciário que se vê abarrotado com denúncias descabidas.

 

NOTA: O presente trabalho é de autoria da médica e advogada ANDREA BRAGA, especializada em Direito Médico, integrante do escritório JOSINO RIBEIRO NETO & ADVOGADOS ASSOCIADOS. Foto em destaque no topo da página.