RETANGULOLHÓDROMO

 

Vitor de Athayde Couto

 

– Retangulolhódromo? Vixe, miga. Que palavrão é esse? Por que não chama logo isso aí de Praça do Boi, do jeito que o povo fala? É muito mais fácil.

 

– É a lei, miga.

 

– Que lei?

 

– Art.1º: “Pra que simplificar se eu posso complicar?” Devemos obedecer. Foi aprovada na Câmara dos Egrégios Conselheiros Voluntários sem Honorários.

 

– Louvado seja! Eu sei, o boi só chega no São João, mas…

 

– Não é isso, miga. Esse boi é outro. Não tem nada a ver com os festejos de São João. É que o povo quis homenagear a arquiteta autora do projeto.

 

– Projeto? Aquele paredão precisou de projeto? – perguntou Anaïs.

 

– Mas é um paredão especial, ali tem muita arte. E ainda funciona como uma enorme concha acústica que aumenta os decibéis do pancadão, para agradar os eleitores, digo, os moradores do local, sobretudo os idosos. Eles ficam sentados nas calçadas, aguardando a hora dos consertos. Muitos idosos são surdos. Alguns até conseguem dormir de boas – disse Mani. – Após o almoço, cochilam o sono da beleza, entreouvindo aquelas meigas lullabies. Os técnicos ficam a tarde toda fazendo consertos e testando os equipamentos, assim: “Alô, som, som, som… Um, dois, três… Som, som, som…”.

 

– Égua… como é mesmo o nome da arquiteta homenageada?

 

– Bel Boi Bardi, mais conhecida como Isabela BBB.

 

– Mas ela já morreu. Muitos anos antes de construírem o paredão.

 

– É, mas dizem… dizem, tá compreendendo?… dizem que o projeto foi psicografado. Veio do céu, de presente aos pracistas, porque eles gostavam de comprar decibéis de Bel. E chicletes, principalmente no São João, em julho.

 

– Em julho? Não seria junho? Chicletes? Não seria milho com cobertura de leite condensado? Que confusão. Agora é que não estou entendendo nada.

 

– Ora, são só narrativas, miga. Narrativas políticas. Não é preciso entender.

 

– Então, me diga: por que Retangulolhódromo, se as quadrilhas também só se apresentam no São João de julho?

 

– Aí é que você se engana, Anaïs. As quadrilhas trabalham muito. Trabalham tanto que se apresentam durante o ano inteiro. Discretamente.

 

– Peraí. De que quadrilha você está falando?

 

– Calma, relaxe. Quadrilha é uma dança de troca de casais. Para inaugurar o Retangulolhódromo sortearam um artista, você sabe, na cidade só tem artista. Pois o sortudo recitou uma poesia bem antiga, de um poeta desses aí, nem lembro o nome dele.

 

– E qual foi a poesia?

 

Quadrilha.

 

– Bem apropriado, né? Vou já ver no gúgli quem é esse poetinha safado que fica incentivando troca de casais.

 

– Boa sorte… mas, escute, o artista recitou este trecho:

 

“João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém…” Quase cem anos depois, todos atualizaram seus nomes e aidís. Johnny é bi e ama Thekka que é trans e ama Ray que é ace e ama Mary que é queer e ama Joe que é cis e ama Lilly que ainda não sabe o que é mas se casou com J. Pinto Fernandes que também não sabe e nem tinha entrado na história porque ainda tem Pinto e…

 

– Por que você disse “ainda” tem Pinto?

 

– No nome, miga. No nome. Você não sabia? Já se podem mudar muitas coisas, inclusive o nome. Agora qualquer pessoa tem direito ao amor, desde que suado, digo, consensuado. Do jeito e com quem ela quiser. Até Lili que não amava ninguém.

 

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Escute a narração na voz do próprio autor: