SOVACOS ILUSTRADOS

 

Vitor de Athayde Couto

No Colégio Central, Jerry foi campeão de cuspe à distância. Seu segredo era simples: altura (que ele tinha de sobra) e algumas horas sem beber líquido, até o cuspe ficar no ponto de bala. Jerry é uma pessoa correta e de bom caráter, valores apreciados, no Brasill, até meados dos anos 60. Respeitadíssimo, vivia rodeado de colegas, principalmente as meninas do 3ºC. Uma delas conseguia levar Jerry para qualquer lugar que quisesse. De tão amigos pareciam irmãos.

 

Certa manhã Khrishta acordou querendo ser intelectual. É que havia sonhado durante a noite. Decidiu participar do grupo de estudos do professor HR. Professor de Filosofia, História e Ciência Política, HR era um guru. Conhecia tudo. Nada a ver com os atuais saberedas que atendem pelo nome de coach. Ao contrário, HR era muito estudioso. Conhecia de etnogastronomia até artes plásticas, passando por esportes, teatro, religião, literatura, música, guerras, horóscopos, vulcanologia, sudoku, mitologias, chácaras & quintais. E paz.

 

Na primeira aula, Khrishta apareceu lá, com Jerry a tiracolo. A turma, reunida no salão assoalhado de um casarão colonial da Ladeira de Santa Tereza, era composta por uma dúzia de jovens idealistas e esperançosos, bem no estilo dos anos 60. Todos queriam transformar o mundo para melhor. Só isso.

 

HR estava sempre à disposição para perguntas. Podia-se perguntar qualquer coisa. Qualquer coisa, mesmo. O que mais impressionava era a profundidade e o rigor científico das suas respostas.

 

Numa confraternização de fim de ano, na casa do professor, Khrishta ficou tão impressionada com o tamanho da sua biblioteca que já queria desistir do seu projeto de virar intelectual, haha. Além dos livros, havia muitos discos de vinil. O professor era apaixonado pela voz da Ella Fitzgerald. Naquela noite especial Ella cantou para ele “There’s a lull in my life” e outros standards.

 

Todos degustavam pãezinhos delícia com recheio. A bebida era uma inocente sangria galega. Fraca e aguada, feita com vinho de uvas Isabel. Alegres cubinhos de maçã flutuavam na jarra decorada com uma serpentina de casca de laranja-de-umbigo. HR, muito divertido, aproveitou que não estava em sala de aula para falar coisas que hoje seriam consideradas preconceituosas. Para ele, nada era surpresa. Em vida, repetia: “tudo muda o tempo todo”.

 

Mirando seus milhares de livros, todos lidos e rabiscados, lembrou-se do pátio da Faculdade de Filosofia. O pátio era conhecido como passarela da cultura. Ali as pessoas exibiam-se diariamente. Desfilavam sempre com um indefectível livro debaixo do braço. Todos riram quando ele definiu essa movimentação como desfile dos sovacos ilustrados. Mal sabiam que muita gente continuaria essa tradição, no Brasil de hoje, ilustrando sovacos com bíblias suadas.

 

– Bíblias? Que bíblias? São tantas versões, tantos donos… – perguntou Jerry, ao que o professor respondeu.

 

– Pois é. Cuidado com as bíblias privadas e outras publicações que têm “dono”. Inclusive aquelas feitas com dinheiro público disfarçado. Sem conselho editorial minimamente respeitável, o “dono” só publica o que lhe convém, conforme a sua ideologia e estética rastaqueras. Toda publicação que tem “dono” mantém uma janela sempre aberta para a deturpação, o arbítrio e a censura.

 

Nas palestras, o sábio professor não trazia verdades. Trazia questões. Trazia dúvidas. As suas aulas fluíam a partir do que ele não sabia. Incansável, repetia: sem a crítica destrutiva, o conhecimento não avança. Crítica construtiva não é crítica, é só frescura desprovida de método científico. É conversa de equilibrista que vive de elogiar por elogiar. Nunca sai de onde o conhecimento estaciona.

 

– Onde é que o conhecimento estaciona, professor? – perguntou Khrishta.

 

– Em cima do muro – respondeu. E prosseguiu. – Quem vive em cima do muro não planta. Nem colhe. É forçado a comer na mão de alguém de braço bem comprido, capaz de levar a comida até a altura do muro da vergonha.

 

Sovaco ilustrado é a porta de acesso ao baixo clero do conhecimento, disse. Tirou da estante o Romance Encantado d’A Pedra do Reino e o Príncipe Cavaleiro do Sangue do Vai-e-volta, e leu a seguinte passagem: “essa gente só lê coisas curtas – a não ser que as longas tenham certos encantos como a putaria.” Quaderna, personagem central do romance, escreveu seu primeiro epigrama logo depois de ter sido obrigado a tomar chá de cardina, a mando de seu pai. Eram só quatro versos. Foram publicados no Almanaque Charadístico e Literário das Postilas de Gramática e Retórica Saturnal, Solar e Lunar, assim:

 

“Esse homem vai terminar

 

bebendo a amarga Cicuta:

 

não por ser um novo Sócrates,

 

mas por ser filho espiritual do distinto escritor grego.”

 

Malgrado o sucesso do epigrama, principalmente entre leitores do velho “Rói-Couro” (a zona), Quaderna foi censurado pelo “dono” do almanaque. Teve de esperar até a próxima tiragem do folheto alternativo Sacatrapo de Urubu, muito lido no Cariri. Em meio a odes, elegias, éclogas e outros gêneros, fingia-se de modesto. Dizia que não era Poeta e se autoesculhambava, confessando ser apenas “autor de almanaques, entendido em horóscopos e luas”. Confessou também que “isso turva e prejudica sua lucidez de Poeta”, e terminou assim:

 

“Poeta, então, Amigo,

 

claro, concreto e limpo és mesmo tu!

 

E eu, sangue do Castigo,

 

– de Rei, Onça e Urutu –

 

Deixo-te o Campo: vai tomar na rima!”

 

Entre o pessoal do Rói-Couro, da rua, e da praça do povo, o êxito foi de causar inveja – e “os invejosos têm reserva de solitárias exclusivas no cu do inferno”.

 

Jerry lembrou um dos trabalhos hebdomadários que HR encomendava: estudar o conceito de destruição criadora – a importância da crítica não acrítica para o avanço do conhecimento. Cada um apresentava o resultado do seu trabalho. Quando o trabalho era superficial e medíocre, ele reagia com firmeza, dizendo: de tanto carregar livro, teu sovaco já está virando axila. Isso aí é cultura de almanaque. De almanaque Capivarol, ainda por cima!