hands-in-prayerSEMANÁRIO JURÍDICO – EDIÇÃO DE 06.04.2018

JOSINO RIBEIRO NETO

TESTAMENTO VITAL –  PACIENTE TERMINAL – MORTE DIGNA.

O direito à vida é universalmente tutelado. É a base e o fundamento de qualquer direito ou garantia do ser humano, no Brasil, assegurado pela Constituição Federal.

A dignidade do ser humano pode superar a própria vida, atingindo a morte, desde que falte à pessoa a possibilidade de viver com dignidade.

A evolução da Medicina tem motivado profunda alteração entre a Ciência Médica e a sociedade e a utilização de recursos técnicos vêm se sobrepondo à lógica e a razão, que podem ser exemplificados no que se pode denominar de obstinação terapêutica ou distanásia, capaz de manter vivo, graças à aparelhos modernos, paciente terminal sem nenhuma chance de cura.

A partir dessa situação, que pode resultar no prolongamento da vida de um paciente terminal, capaz de proporcionar sofrimento continuado no doente e de seus familiares, surgiu uma espécie de eutanásia consentida,isto é, legalmente autorizada,  que poderá se efetivar através de um documento denominado de TESTAMENTO VITAL, já praticado nos Estados Unidos, Espanha, França e Itália e outros países, não motivando mais controvérsias.

A Doutora Viviane Rosálio Teodoro, em recente trabalho doutrinário publicado na Revista Síntese nº 108, pgs. 89/90, sobre o TESTAMENTO VITAL, oferece aos leitores o seguinte conceito:

“A autonomia e a liberdade são institutos que permitem que o paciente possa expressar sua vontade no sentido de ter a chamada morte digna e recusar tratamentos e procedimentos que entende não mais serem adequados para que a vida continue seu ciclo”. E prossegue:

“Nesse sentido  o testamento vital  é “um documento no qual uma pessoa capaz possa indicar seu desejo de que se lhe deixe aplicar tratamento em caso de enfermidade terminal”.  

A jurista Marcella Kfouri Meirelles Cabral, pontifica:

“ O testamento vital permite que o paciente, utilizando-se de princípios e direitos, como o da autonomia da vontade e liberdade de escolha, possa direcionar a autuação do médico e, nesse sentido poderá dispor de um direito maior, o direito à vida, que condiciona todos os demais direitos da personalidade e que também pode ser considerado condição sine qua non  para a aplicação de princípios constitucionais. O testamento vital deve ser visto com cautela elevando-se em conta o caso em que houve a declaração do testador, sob pena de se ver comprometido direito à vida em desfavor de uma falsa percepção do que seria o direito de uma morte digna.” ( TESTAMENTO VITAL – QUESTÕES POLÊMICAS, trabalho do Mestrado, in Revista Sintese, 106, p. 90).

Atinente à natureza jurídica do TESTAMENTO VITAL  alguns estudiosos entendem tratar-se de negócio atípico (aquilo que foge da normalidade), em razão da ausência de suporte fático em nosso ordenamento, entretanto defendem a aplicação analógica do art. 425 do Código Civil, verbis:

Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.

Registre-se que se trata de um documento sem qualquer incursão de cunho patrimonial, tendo como objeto exclusivo a aceitação de cuidados de saúde  do testador, podendo conter a nomeação de um terceiro,pessoa de sua confiança, a quem deve ser outorgado o que se denomina de  mandato duradouro , para decidir em seu nome, quando este estiver incapaz de manifestar de modo autônoma e consciente sua vontade, sem perceber qualquer remuneração financeira por tal encargo.

Ainda, sobre o referido documento a manifestação doutrinária de Viviane Rosolia Teodoro é oportuna:

“As Diretrizes Antecipadas da Vontade, no Brasil, não podem ter disposições sobre doação de órgãos, uma vez que a Lei nº 9. 434/1997, alterada pela Lei nº 10.211/2001, estabelece que a vontade dos familiares do falecido prevalece sobre a vontade deste, manifestada em vida e, portanto, é contrária às Diretrizes Antecipadas da Vontade, nas quais a vontade manifestada pelo outorgante prevalece sobre a vontade dos familiares e dos profissionais de saúde”. (ob. cit. pg. 92)      

Em sede de procedimentos, objetivando prevenir direitos e responsabilidades, chegando o documento ao conhecimento do médico que cuida do paciente deve ser promovido seu arquivamento e anotação  no respectivo prontuário ( art 1º da Resolução 1.638/2002), para que  suas determinações sejam seguidas pela equipe médica, desde que não estejam em desacordo com as normas do Código de Ética Médica, especificamente no que consta do art. 2º, § 2º, da Resolução nº 1.995/2012, que dispõe: “o médico deixará de levar em consideração as Diretivas Antecipadas de Vontade do paciente ou representante que, em análise estiverem em desacordo com os preceitos do Código de Ética Médica”.

 Ainda sobre o TESTAMENTO VITAL, deve ser sempre considerada a capacidade do doente/autor, que, inclusive, poderá altera – lo total ou parcialmente, enquanto estiver o autor do documento no pleno gozo de suas faculdades mentais.

Em sede de legislação sobre a matéria figura na Resolução nº 1.995/2012, que “não se justifica prolongar um sofrimento desnecessário, em detrimento à qualidade de vida do ser humano”, e normatiza a possibilidade de a pessoa se manifestar a respeito, obediente a 3 (três requisitos: I – a decisão do paciente deve ser feita antecipadamente, isto e, antes da fase crítica do seu estado de saúde; II – o paciente deverá se encontrar no pleno gozo de suas faculdades mentais; e III – deve constar que a sua manifestação de vontade deve prevalecer sobre a vontade de seus familiares e dos médicos que o assistem.

Conforme consta do art. 1º, § 4º, da Resolução nº 1.995/2012, o testamento vital pode ser escrito ou verbal , considerando que a exigência é de que as Diretivas Antecipadas de Vontade  sejam feitas diretamente pelo paciente sendo desnecessária de que a comunicação se subordine ao formalizo da escrita.

A Resolução supra referenciada teve sua constitucionalidade questionada através da Ação Civil Pública nº 1039-86.2013.4.01.3500, ajuizada pela Procuradoria da República no Estado de  Goiás, mas foi julgada improcedente, restando assegurada a constitucionalidade de suas regras.

No âmbito da Justiça o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou em maio de 2014, o Enunciado nº 37, na I Jornada de Direito da Saúde, onde consta:

As Diretivas ou declarações antecipadas de vontade que especificam os tratamentos médicos que o declarante deseja ou não se submeter quando incapacitado  de expressar-se autonomamente devem ser feitas por escrito por instrumento particular, com duas testemunhas , ou público, sem prejuízo de outras formas inequívocas de manifestação admitidas em direito”.

Em sede de jurisprudência colhe-se de julgamento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, cujas decisões são inovadoras em questões polêmicas o que segue:

“Apelação cível. Assistência à saúde. Biodireito. Ortotanásia. Testamento vital. 1. Se o paciente, com o pé esquerdo necrosado, se nega  à amputação, preferindo, conforme laudo psicólogic, morrer para  “aliviar o sofrimento “ e, conforme laudo psiquiátrico, se encontra em pleno gozo das faculdades mentais, o Estado não pode invadir seu corpo e realizar a cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de salvar sua vida. 2. O caso se insere no denominado biodireito, na dimensão de ortotanásia, que vem a ser a morte no seu devido tempo, sem prolongar a vida por meios artificiais, ou além do que seria o processo natural. 3. O direito à vida garantido no art. 5º, caput, deve ser combinado com o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 2º, III, ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. A constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento ou cirurgia, máxime quando mutilatória. Ademais, na esfera infraconstitucional, o fato de o art. 15 do CC proibir tratamento médico ou intervenção cirúrgica quando há risco de vida, não quer dizer que, não havendo risco, ou mesmo quando para salvar a vida,  a pessoa pode ser constrangida a tal. 4.  Nas circunstâncias, a fim de preservar o médico de eventual acusação de terceiros, tem-se que o paciente, pelo quanto consta nos autos, fez o denominado testamento vital, que figura na Resolução nº 1.995/2012, do Conselho Federal de Medicina. 5. Apelação desprovida.

[…] Tal manifestação de vontade, que vem sendo chamada de testamento vital, figura Resolução nº 1.995/2012, do Conselho Federal de Medicina, na qual consta que “não se justifica prolongar um sofrimento desnecessário, em detrimento à qualidade de vida do ser humano” e prevê, então a possibilidade de a pessoa se manifestar a respeito, mediante três requisitos: (1) a decisão do paciente deve ser feita antecipadamente, isto é, antes da fase crítica; (2) o paciente deve estar plenamente consciente; e (3) deve constar que a sua manifestação de vontade deve prevalecer sobre a vontade dos parentes e dos médicos que o assistem. Ademias, no âmbito infraconstitucional, especificamente o Código Civil, dispõe o art. 15: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica “. O fato de o dispositivo proibir quando há risco de vida não quer dizer que, não havendo, a pessoa pode ser constrangida a tratamento ou intervenção cirúrgica, máxime quando mutilatória de seu organismo. Por fim, se por um lado muito louvável  a preocupação da ilustre Promotora de Justiça que subscreve a inicial e o recurso, bem assim do profissional da medicina que assiste o autor, por outro não se pode desconsiderar o trauma da amputação, causando-lhe sofrimento moral, de sorte que a sua opção não é desmotivada. Apenas que, eminentes colegas, nas circunstâncias, a fim de preservar o médico de eventual acusação de terceiros, tenho que o paciente, pelo que consta nos autos, fez o seu testamento vital no sentido de não se submeter à amputação, com os riscos inerentes à recusa. Nesses termos, e com o registro final, desprovejo a apelação. ( TJRS, AC 70054988266, 1ª C.Cív., J. 20.11.2013)

À guisa de conclusão o que se pode afirmar é que o TESTAMENTO VITAL, embora não exista legislação específica (existem apenas alguns Projetos de Leis no Congresso) é juridicamente possível no Brasil, que deve ser tratado como declaração de vontade, que pode ser formal, isto é, impressa em documento ou verbalmente, desde que compatível e sem afrontar as regras do Código Civil, do Conselho Federal de Medicina e do Conselho Nacional de Justiça.

O princípio da dignidade da pessoa humana respalda o direito de uma morte digna daqueles que apenas “vegetam”, ligado a “máquinas”, em algumas situações até por interesse financeira das entidades hospitalares, mas, sem nenhuma chance de cura, restando o que se denomina de distanásia (dis  = afastamento e tanásia = a morte), que significa a obstinação terapêutica ou futilidade médica na busca do impossível.