A BONECA DE MILHO

 

Vitor de Athayde Couto

A pequena Amparo sempre desejou ter uma boneca de verdade. Pediu tanto que seu desejo foi atendido. Na Lagoa do Boi, onde mora, o comércio resume-se à vendinha do seu Manduca. O povoado quase deserto, devido ao êxodo rural, é cercado de roças familiares de subsistência. A produção é dominada pelo tri-consórcio da pobreza: milho, feijão e mandioca. Com a chuva do céu parecem cair sementes de maxixe, abóbora e melancia, que germinam e enramam pelo meio do roçado.

 

No pó e nas primeiras chuvas, sua mãe planta milho. Seu pai pica fumo. Amparo gosta de ajudar na hora de tirar a palha do milho, ávida por encontrar uma daquelas “bonecas da sorte”. De fato, embaixo de algumas espigas, com um pouco de sorte, brotam pequenos sabugos que parecem mini espigas. Quando encontra uma, comemora e mete-se a brincar, ajeitando os fios sedosos de cabelos que emergem de cada grão. São cabelos de princesa.

 

Amparo também gosta de ir à venda do seu Manduca, toda vez que sua mãe manda comprar uma caixinha de fósforos ou um pedaço de sabão de coco. Sobre o balcão e acima da cabeça do seu Manduca flutuam mágicas bonecas de plástico cor de rosa, e bolas coloridas. Todos os brinquedos são envelopados em sacos plásticos transparentes para evitar poeira e cocô de moscas. Enquanto espera ser atendida, Amparo fica admirando aquelas bonecas penduradas como anjos caindo do céu. Mas nenhuma cairá em seus braços.

 

– Por que tu demorou tanto, Amparo?

 

– Oh, mãe, eu tava olhando as bonecas. São tão bonitas.

 

Aquela vendinha de interior enchia os olhos da pequena Amparo, como um grande shopping center enche os olhos de uma criança da cidade.

 

No dia seguinte:

 

– Mãe, tu não quer que eu compre nada hoje, não?

 

– Toma este vidro e vai comprar cinquenta centavos de azeite. Diz pra anotar na caderneta porque hoje eu não tenho dinheiro. Seu Manduca é muito bom, ele sempre me ajuda.

 

Lá se foi ela correndo, com seu quimão (quimono) esvoaçante, mostrando a calcinha.

 

Um dia, os homens da venda notaram que a calcinha tinha pequenas manchas de sangue. Entreolharam-se, e, depois que Amparo saiu, comentaram:

 

– Essa menina tá viçando…

 

Seu Manduca concordou, acrescentando:

 

– Tem é tempo que ela compra aqui. Desde quando nem sabia falar direito.

 

Foi numa segunda-feira, dia de ressaca da cachaça do fim de semana, a venda estava praticamente deserta. Lá estava apenas seu Manduca. Amparo chegou tropeçando no batente e caiu, pois só olhava pras bonecas penduradas no cordão. Seu Manduca prontamente levantou a menina e pôs no seu colo, dizendo:

 

– Não chora, tu já é uma mocinha. Tá vendo aquela boneca ali? A maior de todas?

 

– Humhum…

 

– Pois um dia tu vai ganhar uma igualzinha.

 

Ao voltar pra casa foi logo ouvindo o eterno mantra, debaixo de tapa:

 

– Por que tu demorou tanto, Amparo? Hoje foi demais, viu? Vou dizer pro teu pai. Deixa só ele sair daquele tucum. Tu vai ver. Vou te mandar pra casa da tua avó, na cidade. Preciso cuidar dos teus irmãos.

 

Passaram-se quatro meses. Com a barriga crescendo, sem saber por quê, Amparo foi enviada para a cidade monarca de grande, conhecida como a capital gastronômica do creme de galinha gurmê.

 

Vó Cotinha era aposentada de salário mínimo. Não se pode dizer que vivia sozinha, pois tinha uma televisão. Quando Amparo viu a tv ligada, descobriu que o mundo é bem mais do que a venda do seu Manduca.

 

Quando veio setembro, começaram as propagandas comerciais com lançamentos e promoções para o dia da criança. Naquele ano, a novidade era uma boneca quase de verdade. Via-se nas imagens uma menina rica segurando a boneca que simulava comer e beber; depois, fazia cocô e xixi. Tinha boneca de todo tipo, que embaralhava os desejos de Amparo.

 

– Vovó, o que é boneca LGBT ?

 

– Deixa de conversa, menina.

 

– Vovó, tu me dá uma?

 

– Não posso, Amparo, isso é muito caro. Mas, calma que lá pro Natal tu vai ganhar uma melhor ainda. Vai comer e beber de verdade, fazer cocô e xixi de verdade. Tem até cheiro, tu vai ver.

 

– A senhora sabe se a minha boneca vai ser pretinha ou cor de rosa? Vai andar, como toda criança, ou vai viver sentada naquela cadeira de rodas, do jeito que aparece na televisão?

 

– Não sei. Na hora tu vai saber.

 

Na véspera do Natal, Amparo ganhou a boneca de verdade, conforme sua avó previu. A boneca foi registrada como Jennyfer de Jesus. Filha de Maria do Amparo de Jesus e pai desconhecido. A mulher do cartório comentou com as colegas doutoras concursadas:

 

– Ô cidadezinha pra ter pai com o mesmo nome: “Desconhecido”.

 

– Haha – riram todas, por trás de batons fortes e sobrancellhas engrossadas com tinta, sempre destoando da tinta dos cabelos loiros. E acrescentaram:

 

– Não sei o que tem na cabeça dessas meninas. Não têm um pingo de vergonha. Vive tudo atrás de homem.

 

Mas Amparo está feliz no melhor Natal de sua vida de menina. Todo dia agradece a Deus e ao Papai Noel pelo presente. Agora ela  brinca de boneca pela manhã, pela tarde e por toda a noite. Feliz por ter recuperado uma infância quase perdida, enquanto as bonecas e bolas do seu Manduca continuam penduradas e mudas, envelopadas em sacos plásticos transparentes, por causa da poeira e do cocô das moscas.

 

Sentadas em frente à tv, as três gerações de mulheres ouvem, no intervalo, o mantra das autoridades educacionais do governo: “lugar de criança é na escola”. Enquanto isso o cheiro daquela madrugada chuvosa e fria anuncia que Jennyfer acaba de sujar a última fralda que ainda resta em casa.

 

Mas Amparo está feliz no melhor Natal de sua vida de menina. Antes das poucas horas de sono, reza e agradece porque todas estão com saúde. Depois dorme e sonha com bonecas de milho.