A MINHA TIURÍA

 

Vitor de Athayde Couto

 

– É a minha tiuría que você quer saber? – perguntou a escrivã do cartório – Olha, Mani, não é bem uma tiuría. Ainda estou na fase das observações, mas elas já me permitem revelar algumas ideias. Posso estar errada mas…

 

– Sim, continue. Estou curiosa.

 

– …quem abusa desses nomes fora da curva (e que hoje parecem ser a própria curva) é essa gente diferenciada.

 

– Gente diferenciada? Que gente é essa?

 

– No começo, eram só pessoas que vinham do interior. Vinham a pé, montadas em jumento, de bicicleta, de todo jeito. Gente diferenciada, você me entende? Mas depois que aposentaram os jumentos, passaram a viajar nessas motos assassinas.

 

– Assassinas? Por quê?

 

– Ora, porque jumento não mata ninguém. Ele é só um animal. As motos, não. Elas apenas matam. Mas, lá do interior mais largado, como a Lagoa do Boi, a Várzea do Baixio… são as vans que trazem as mulheres pra registrar os filhos.

 

– Só as mulheres?

 

– Quase sempre. Os pais vêm, mas só muito raramente. Até porque são seres invisíveis, em muitos casos. E ninguém diz nada, faz parte da cultura. É o contrário da tese feminista que chama atenção para a invisibilidade do trabalho doméstico, o trabalho das mulheres, no geral. Aqui, não. A invisibilidade é dos machos escondidos por trás do medo. Pais invisíveis ou desconhecidos. É assim que a lei manda registrar: “pai desconhecido”, enquanto a mãe prefere chamá-lo de “o falecido”, haha.

 

– E pode registrar a criança sem a presença do pai?

 

– Se tiver testemunha, pode.

 

– Então, elas trazem testemunha?

 

– Não precisa.

 

– Como assim, não precisa?

 

– Olha, essa gente diferenciada é muito unida, muito solidária nas dificuldades da vida. As mães consideram as outras como irmãs. Aí, fica fácil. Qualquer uma assina pra outra, e vice-versa. Facilita até o nosso trabalho no cartório.

 

– E os nomes das crianças?

 

– Ah, nem queira saber. É só olhar pras roupas e o objeto que as mulheres trazem sempre debaixo do sovaco.

 

– O quê? Pelos? Cabelos? Suor?

 

– Não. É um livro de capa preta que elas chamam de bíblia. Mas não sei se leem. A maioria não sabe nem assinar o nome. Com muito esforço e paciência, uma ou outra consegue até desenhar umas garatujas. Mas são muito saberedas na hora de cagar regra na vida dos outros, citando trechos do velho testamento. E do novo também.

 

– De memória?

 

– Quem sabe? Se elas inventam nomes, quem é que garante que elas não estão inventando histórias de um tempo e lugar onde nunca estiveram?

 

– Haha. Isso me faz lembrar um amigo meu que visitava uma exposição do agronegócio. Ele estava acompanhado de um técnico que não parava de falar em deus, “porque deus te ama, te perdoa, te ajuda, te… está vendo tudo o que você faz, por onde anda, etc.”, bem no estilo “bom dia” das redes sociais. Ele sabia tanto de deus que parecia porteiro de algum condomínio lá do céu. Nesse momento pararam diante do chiqueiro de cabras repartidas. Meu amigo perguntou ao técnico por que o cocô era de bolinhas. Ao responder “não sei”, o técnico teve que ouvir: “rapaz, tu não entende nem de merda e fica aí o tempo todo falando de deus.” Mas, e as roupas das mães?

 

– Ah, se a saia é bem comprida, abaixo dos joelhos, pode crer.

 

– Entendi. São crentes.

 

– Sim, mas são crentes diferenciadas, atemporais.

 

– Diabéisso?

 

– Crentes sem história, dessas igrejas também inventadas nos últimos dias. Igrejas que não têm história, compreende?

 

– E por que essas crentes atemporais botam nomes esgalifosos nas pobres crianças? Ninguém ganha com isso. As crianças só têm a perder. Primeiro, pra aprender a escrever o nome. Demora muito mais tempo. Depois de adultos, nos guichês a que se dirigem, pra tirar qualquer documento, ou até pra comprar uma passagem, têm que soletrar e enfatizar bem que o nome se escreve com dois ípsilons, dois enes, etc. Enquanto isso, o alto-falante anuncia que o ônibus já vai partir, a fila cresce e as pessoas, de tão irritadas, começam a brigar por causa da demora. E na repartição, já pensou? Quando o documento sai todo errado, se alguém reclamar, o funcionário repete aquela frase bem simpática: “falha do sistema”. Aí começa tudo de novo: protocolar um pedido de correção, fazer outra senha, gerar novos boletos, pagar as taxas de correção, segunda via, etc. Por favor, me diga por quê. Por quê?

 

– Bem… – hesitou a escrivã.

 

– Péra, péra! – disse Mani – Antes de você revelar as suas idéias, posso lhe contar uma coisa?

 

– Sim, por favor.

 

(próxima crônica: “NOMES FORA DA CURVA”)

 

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Escute o texto com a narração do próprio autor: