A VOLTA AOS LIVROS

Vitor de Athayde Couto

Amparo era dazantigas. Aprendeu a ler na carta de ABC. Aprendeu a contar na tabuada. Mas nunca confundiu Aritmética com Matemática, como ainda fazem alguns professores. Escrevia com perfeição, sempre atenta aos conselhos do velho Caldas Aulete, da biblioteca municipal. Apesar de ter estudado em escolas públicas, a sua letra, de tão redondinha, era bem legível, como são legíveis as letras das ex-alunas dos colégios de freiras. E não errava uma conta, para orgulho de sua avó, que vendia bolos de goma na feira, e tinha dificuldade para passar troco.

Na juventude, frequentou a desértica biblioteca pública, onde leu o Tesouro da Juventude, as obras de Monteiro Lobato e toda a Coleção Rosa, para meninas.

Na idade adulta tinha planos de ler os clássicos da literatura, mas a biblioteca da sua cidadezinha era muito pobre e não tinha nenhum exemplar.

Amparo não tinha dinheiro, como gostaria, para realizar o seu desejo de comprar os principais clássicos. Queria começar adquirindo a Ilíada, depois, Dom Quixote, A Divina Comédia, Hamlet… mas tudo isso não passou de sonho de uma noite de verão, sem trocadilho.

Numa dessas noites sem neve, enquanto comemorava o aniversário de um menino, um certo Jesus, recebeu, como por milagre, a visita do seu tio e padrinho. Ele trazia um curioso presente nas mãos. Parecia um livro, mas era fino demais. Mesmo assim, Amparo torcia para que fosse um livro.

Ao abrir o presente, ela deparou-se com um objeto estranho. Sem saber do que se tratava, ouviu seu padrinho dizer que aquilo não era um livro, mas uma porção de livros. Na verdade, era uma verdadeira biblioteca.

Depois de algumas explicações, Amparo logo aprendeu a manusear o precioso tablet. Ainda sem entender como aquele objeto poderia conter milhares de livros, lembrou-se do velho rádio de sua avó, onde cabia uma igreja inteirinha, com órgão e coral, quando elas ouviam a missa.

Mesmo após ganhar o precioso presente, Amparo continuou frequentando a biblioteca, porque só ali encontrava um clima desértico, além de um bom sinal de internet, pois não tinha como pagar para ter wifi em casa. Além disso, aproveitava para carregar a bateria do tablet.

Graças à internet e ao deserto mudo da biblioteca, leu todos os clássicos em e-books (livros eletrônicos). Com o conhecimento adquirido, foi aprovada num concurso para professora do Estado. Dava aulas tão brilhantes que o seu nome já circulava por toda a Secretaria de Educação. Portanto, ninguém melhor para fazer a palestra de comemoração no Dia Mundial do Livro. O tema da palestra era “O Mito de Fausto”. Tema difícil, pois ela teria que relacionar o Fausto, do próprio Faust, com o Fausto, de Goethe, e o Doutor Fausto, de Thomas Mann.

Felizmente Amparo tinha lido e relido, com bastante atenção, as obras originais e os principais autores faustianos e críticos, o que tornaria fácil a sua tarefa. Mas, ao ser convidada para falar no auditório da universidade local, “deu um branco”, como se costuma dizer. Amparo não se lembrava de nada, não sabia nem sequer quem teria sido Fausto, em nenhuma época ou versão. Na sua memória só restavam as leituras de juventude, feitas em livros físicos. Todas as leituras em e-books tinham se apagado. Mas, qual era a razão?

Como a atenção dos presentes estava concentrada nos seus respectivos aparelhos celulares, logo circulou, pelo auditório, a informação de que estava ocorrendo naquele momento um apagão de internet em todo o planeta – e assim se apagaram todas as memórias das leituras inúteis feitas em e-books.

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