Quando escrevi o livro ASPECTOS DA LITERATURA PIAUIENSE, onde consta um estudo sobre a poesia parnaibana a partir da origem, em 1808, com POEMAS, de Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, – compulsei a coleção do ALMANAQUE DA PARNAÍBA, desde a primeira edição (1924), em busca de informações sobre poetas e poemas. Trabalho gratificante: em cada velha edição colhi preciosas informações sobre a Parnaíba do século XX.
Embora o objeto principal de minhas investigações fosse de natureza literária, os anúncios estampados no ALMANAQUE também me chamaram a atenção, especialmente os mais antigos.
Na falta do rádio e da televisão, que incorporaram ao discurso publicitário sons e imagens dinâmicas, a propaganda em Parnaíba naquele tempo lidava apenas com textos e imagens estáticas. Nesses anúncios rudimentares, avultam os textos prolixos, com enfadonha enumeração dos produtos disponíveis. As ilustrações (tudo em preto e branco) eram raras e, a exemplo dos textos, pouco inventivas. Aqui e ali, a fotografia do empresário-anunciante , ou da fachada do estabelecimento, ou da principal mercadoria à venda.
Mas se a publicidade da época, nitidamente amadorística, não se harmonizava com os princípios elementares da propaganda que recomenda o uso de textos curtos, claros, leves, comunicativos, – trazia pelo menos um aspecto positivo: enumerando exaustivamente suas atividades e suas mercadorias, os comerciantes, sem o saberem, estavam escrevendo importantes páginas da história econômica da cidade, relacionada justamente com seu período de glória e de exuberância (1920/1950). Como assinalou o historiador Manuel Domingos Neto no artigo “A Trajetória do Almanaque da Parnaíba”, publicado na 60ª edição, “talvez os elementos mais densos para o estudo da economia local estejam nos próprios anúncios publicitários. Ao longo dos anos, o Almanaque contou com centenas de anunciantes. Alguns destes empresários de fora que disputavam o mercado local. A maioria era constituída de firmas parnaibanas. Pelos anúncios pode-se conhecer os produtos em oferta, as características do mercado, a competição entre empresários, a mentalidade dos clientes e negociantes, os modismos…”
Foi a partir da leitura desses velhos anúncios publicitários que escrevi alguns poemas voltados para o passado glorioso da cidade, que se orgulhava da condição de grande centro exportador e importador. Um deles, “Anúncios do Almanaque”, é exemplo claro de intertextualidade, tendo resultado do aproveitamento de dois anúncios publicados na edição de 1942: um do Lloyd Brasileiro, representado na cidade por Moraes Correia & Cia.; o outro da Rossbach Brazil Company, filial de Parnaíba. O poema – que se propõe recolocar no mercado consumidor velhos textos publicitários, agora numa linguagem estilizada, rimada, cadenciada e ao mesmo tempo fiel ao tema do original – foi publicado no livro A INSÔNIA DA CIDADE e diz o seguinte:
L L O Y D B R A S I L E I R O
Europa, África do Sul,
América do Norte
E principais portos sul-
Americanos. Anote:
para carga & descarga
de cera de carnaúba,
amêndoas de babaçu,
folhas de jaborandi,
óleo de coco/oiticica,
algodão, noz de tucum
bem como para viagem,
prefira sempre os ligeiros
e confortáveis vapores
do LLOYD BRASILEIRO.
Agentes em Parnaíba,
Tutóia e Luiz Correia:
MORAES CORREIA & CIA.
ROSSBACH BRAZIL COMPANY
– Exportadores –
Matriz:
New York.
Filiais:
Fortaleza
Recife
Bahia
Maceió
Parahyba
do Norte
Parnahyba.
Por trás de anúncios
que o cupim espreita
velhos vapores
e alvarengas velhas
nas águas cor de âmbar
sob o aceno verde
de carnaubais.
“No rio mais raso e mais estreito que outrora
Por onde só passam agora
Pequenos barcos e canoas
Passaram já em passado não remoto
Barcas paquetes vapores de carga alvarengas
Rumo mares sem fronteiras
Com charque jaborandi tucum babaçu
Para Europa
América do Norte
América do Sul
E portos brasileiros.”
(A.C.F. – “Meus olhos Azuis”)
Para confronto vejamos um dos anúncios parafraseados:
L L O Y D B R A S I L E I R O
Patrimônio Nacional
A maior frota mercante de navegação
Da América do Sul.
Serviços de cargas e passageiros para
todos os portos da costa do Brasil.
Mantém linhas de cargas ou passageiros
para
EUROPA, AMÉRICA DO
NORTE, ÁFRICA DO SUL
E PRINCIPAIS PORTOS
SULAMERICANOS
Prefiram para viajar e embarcar suas
cargas os vapores do
L L O Y D B R A S I L E I R O
Agentes em Parnaíba, Tutóia e Luiz Correia:
MORAES CORREIA & CIA
Telefone, 125 – Caica Postal, 16
Av. Pres. Getúlio Vargas, 16
Telegrs: – NAVELLOYD e FRANCORREIA.
Como se observa nos textos confrontados, a recriação parafrástica não constitui um decalque nem propriamente uma readaptação, mas um desenvolvimento explicativo, uma versão desenvolvida do texto primitivo, cabendo ao parafraseador imprimir traços pessoais no trabalho sob pena de incorrer em plágio, em mera reprodução mais ou menos completa do original. E mais: diferentemente da paródia, que é a composição literária que imita, cômica ou satiricamente, o tema e/ou a forma de uma obra séria, a paráfrase não tem intenção de ridicularizar e consiste na reinvenção de um texto mantendo fidelidade às ideias do original.
Com 392 páginas, na mencionada 19ª edição foram publicados 252 anúncios, rigorosamente contados, sem considerar o estampado na contracapa, a maioria preenchendo página inteira. Resultado: aproximadamente metade das páginas do anuário correspondia a anúncios publicitários. Predominavam os de empresas de Parnaíba, mas eram publicados também os de estabelecimentos de outros municípios piauienses, como Teresina, Campo Maior, União, Floriano, Miguel Alves, Piripiri, Piracuruca, Pedro II, etc.
Às vezes, a influência desses anúncios na minha poesia não é tão ostensiva como no exemplo colocado acima. É o que ocorre com os seguintes poemas que focalizam o contraste entre a exuberância da nossa atividade econômica no passado e a estagnação na segunda metade do século XX:
RELÍQUIAS
Do Porto Salgado
aos Tucuns
as alvarengas enferrujadas
e os vapores abandonados
lembram os bons ventos fluviais
que abanavam a cidade.
SONETO FLUVIAL
Contemplando o rio d’águas barrentas
bem em frente do cais ao Igara
vejo-lhe as curvas com a cara
da minha e da cara d’outras gentes.
Desta mesma plataforma estreita
já te vi mais profundo e mais largo.
Ah, como é triste ver-te tão magro
e sem os vapores d’outros tempos!
Ex-rio das exportações para a Europa
América do Norte e do Sul
(jaborandi tucum babaçu…)
– deste velho cais estreito outrora
sobre o álveo não via das curvas tuas
estas lágrimas fluviais d’agora.
Por Alcenor Candeira Filho