COME FRIO
Vitor de Athayde Couto
– A vingança é um prato que se come…
– Frio! – arrematou Maruzinho.
– Como sabes disso? – perguntou Guirindó.
– Ora, ora. Esse é o lema oficial da política parnasiana.
– Verdade, Maruzinho. Mas eu queria falar de outro assunto. Queria falar de um indivíduo psico-alguma-coisa-que-eu-não-me-lembro. Ele é muito conhecido em Parnasia. Lembro que ele sofreu muito bullying na escola, só porque era feio.
– Sim, mas e daí? Tem tanta gente feia no mundo, né?
– Não, não é simples assim. Tu ainda não viste nada. Esse de quem eu falo não é só feio, é muito, muito feio. É tão feio que eu nunca vi um homem tão feio como aquele homem feio.
– Coitado!
– Pois é, com o tempo ele foi se retraindo, se isolando, e já não conseguia se comunicar mais com ninguém. Até porque ninguém liga mesmo pra ele, né?
– Coitado!
– Mas ele é inteligente, muito inteligente. Sabendo que ninguém nunca ia ligar pra ele, resolveu procurar uma ocupação que lhe desse um meio de vida e pudesse trabalhar sozinho, completamente isolado, bem longe de todo mundo.
– Já sei, foi ser tradutor.
– Não, ele escolheu outra profissão e entrou num curso de formação prática.
– Curso de quê?
– Tanatopraxia. Sim, isso mesmo. Com dois anos ele se formou tanatopraxista.
– Diabéisso?
– Preparador de cadáver, cara, magina!
– É, escolheu bem. Quem vai querer perturbar um cara que trabalha em laboratório da funerária? Tédoidé?
– Ao saber disso, procurei conhecer alguns detalhes. Li num almanaque que o tanatopraxista (tanato, para os íntimos) faz “de um tudo” com os cadáveres. Soube também que isso dá dinheiro, muito dinheiro, pois tem família rica que faz questão de ter o seu parente bem apresentado num velório chique, com direito a lanche, inclusive bolacha pocazói com café, mesmo parecendo ser coisa de pobre.
– E o que ele faz?
– Tudo que se pode fazer com os vivos, desde depilação íntima até stigmata post mortem.
– Diabéisso?
– Pelo que entendi, é uma espécie de tatuagem, que se faz no cadáver, geralmente sobre temas religiosos. Feita a depilação íntima, tosa do cabelo, manicure, pedicure, dentes escovados etc., o corpo é bem lavado e perfumado. Depois é tatuado, e, finalmente, vestido.
– Mano, tem cada profissão nesse mundo, né? Coitado desse homem!
– Coitado, nada, rapá! Além de ser muito bem pago, ele gosta do seu trabalho. Aliás, ele adora. É fundamental gostar do que a gente faz como profissão, como dizem os psico alguma coisa. Soube que ele sente até muito prazer nisso.
– Prazer? Como assim?
– Mano, o cara tem várias passagens pela polícia. Dizem até que muita gente morta faz bêó contra ele, via internet.
– ?
– Isso mesmo, bêó, boletim de ocorrência. O problema é que o delegado nunca acha a reclamante pra dar seguimento à denúncia.
– Por quê?
– Ora, porque a reclamante está morta, cara! Mortinha, mortinha. E sepultada!
– Ééégua… como dizem os paulistas, eu num tou intendêêêindo!
– Pensa, rapá! Tu não te lembras que o tanato sofria bullying na escola?
– Lembro, sim.
– Que ele é feio, muito feio?
– Lembro, sim.
– E que ele foi ficando retraído e queria ter uma profissão pra trabalhar sozinho, isolado, sem ser perturbado por ninguém?
– Lembro, sim.
– Então? Um cara muito feio, retraído e tímido nunca arruma namorada, né? Daí, ele descarrega o passivo acumulado nas defuntas, principalmente as mais novinhas e bem bonitinhas.
– Carái! Aí já é necropedofilia!
– Pois é, e com requinte! Ele só faz amor, ou melhor, ele só pratica necrofilia ouvindo boa música. A sua preferida é a belíssima pavana impressionista do compositor francês Maurice Ravel, Pavane pour une infante defunte (ouça aqui).
– Mano, Deus me livre! E como é o nome desse psiconunseiquelá, nunseiquelá, nunseiquelá, que faz “de um tudo”?
– O nome, eu não sei. Só sei o apelido.
– E qual é o apelido dele?
– “Come Frio”.
– Rá rá rá! Discupaê, ô galera do além! Não pude me controlar.
– Te liga, mano. Isso é muito grave porque é mais uma modalidade de vingança de quem sofreu bullying na infância.
– Ah, agora entendi o ditado: “A vingança é um prato que se come frio”.
_____________________________________________________________________________
Ouça o áudio com o texto narrado pelo autor: