CURRÍCULOS RIDÍCULOS I
Vitor de Athayde Couto
– Traga seu currículo, minha filha – disse o comerciante que contava dinheiro.
Tainá despediu-se, esperançosa de conseguir o seu primeiro emprego.
Já em casa, a culuminha encorpada olhou-se no espelho. Sorridente, sempre elogiada pela beleza, admirou seus olhos puxados de tremembé mestiça.
Currículo é uma palavra engraçada. Antigamente escrevia-se curriculum, seguida do genitivo vitae. O plural é mais esquisito ainda. Eram tempos sérios. Hoje, depois de dicionarizada no Brasil, currículo ficou mais engraçada ainda. É uma palavra que contém outras duas, referentes ao orifício situado na extremidade inferior do intestino grosso, por onde se expelem os excrementos.
Quando os currículos são ridículos, dá vontade de rir duas vezes. Seria divertido, se não fosse trágico. Mas, o que é trágico? Trágico é ser governado por um dedo podre que escolhe currículos damarianos, sallesianos, decotellianos e kassianos.
O currículo do Decotelli já é notícia fria. Mas, nesta semana ardente, foi requentada pela versão narrativa do Kássio. Não, um ministro do STF não precisa ter doutorado. O seu currículo pode até ser pobre. Só não pode é conter fraude, como curso inexistente, pós-doutorado de cinco dias (anterior ao doutorado), e trabalho ctrl+c ctrl+v.
Mas, como não há nada tão ruim que não possa piorar, é melhor passar pano. Para não decotellizar o Kássio. Periga ele ser trocado por algo terrivelmente qualquer coisa.
Apesar do nome engraçado, currículo é coisa séria. Na juventude, todo mundo faz o seu, de qualquer jeito, a exemplo de Tainá. Currículos simples seguem modelos comprados em bancas de revista, papelarias, internet, etc. Capa e contracapa são indispensáveis para aumentar o volume. Feito o currículo, começa a distribuição à procura do primeiro emprego em postos de gasolina, farmácias, mercadinhos, etc. Valdersons, Andrezas, Samaras… todos esperam ser chamados para empregos que não existem. “Traga seu currículo” é só uma frase que faz parte da narrativa de comerciantes sonegadores de impostos. Para eles, a vida dos jovens não tem nenhum valor.
Um ex-aluno, bacharel em direito e mestre em Bioética, inscreveu-se para uma vaga numa academia de letras jurídicas. Apesar de ter apresentado um extenso currículo, com todos os comprovantes indispensáveis, não obteve sucesso. A vaga já estava negociada. Havia muitos inscritos, mas nenhum currículo foi sequer examinado. Mesmo assim, como fazem os comerciantes, currículos continuam sendo requeridos, talvez para fingir alguma seriedade institucional no estilo minganaqueugosto.
Relegados ao faz de conta, inúmeros currículos honestos, que custam trabalho e dinheiro, são desprezados. Com todo respeito ao cu-rrí-culo, referi-me ao “orifício situado na extremidade inferior do intestino grosso…”. Fosse o despudorado astrólogo Olavo de Carvalho, guru da pauta de costumes, excretaria logo que currículo contém dois forévis: cu e culo, em português e em espanhol. É assim que as “pessoas de bem” avaliam currículos no Brasil. Portanto, jovem, não esqueça: “Traga seu currículo”.
E assim, Tainá, de biquíni e canga transparente, por onde se via a tatuagem de uma aranha na teia, entrou no triste cumérçu daquele “homem sério que contava dinheiro” e disse, sem tirar o capacete da cabeça:
– Bom dia, tiozim! Taí o quibes! – e colocou o currículo sobre a mesa.
O comerciante não entendeu nada. Ele é da geração curriculum, mas fala currículo, tentando ser moderno. E não faz ideia de que a galera pós-moderna fala quibes, só para não rimar. Consta que esse patuá começou na Bahia, onde tem muitas palavras terminadas com “u”, como caruru, curuzu, aratu… Em neobaianês pronuncia-se caruribes, curuzibes, aratibes…
Tainá despediu-se com um
– Tchau, tiozim! Qualquer coisa miligues, meu celular taí!
Em seguida agarrou a mão do namorado. Dirigindo-se à moto, perguntou:
– Mô, posso conduzir a sua moto STF-X 250?
– Agora não, Mozinha. Você ainda não tem uma conduta ilibada.
Os dois sertanejos-quase-universitários trocaram beijos aparentemente héteros, subiram na moto e tomaram o rumo da praia na linda manhã de sol.
O homem sério que contava dinheiro parou, com falta de ar e dificuldade para respirar.
Ele não viu a banda passar. Nem o tempo.