– Por que alguns bacharéis são chamados de “doutor” e outros, não?

Fez-se um silêncio no atrivm da delegacia, onde a galera joga dominó 24 horas por dia. Jogam caguete com suspeito, advogado-de-porta-de-cadeia com acusado, agente da civil com vendedor de cuscuz… Seis duplas de frequentadores assíduos disputam três tabuleiros. Mas todos pararam diante da pergunta. Não sei quem perguntou, pois não identifiquei a voz. Um oficial de justiça concursado foi logo respondendo com esta outra pergunta:

– Ôxe, doutor não é quem tem formatura?

– Sei não – disse o papiloscopista concursado, que estava de pé, apreciando a pancadaria nos tabuleiros de dominó. – Meu tio é professor concursado. Tem formatura em filosofia, mas ninguém chama ele de doutor.

Depois de meia hora desfilando todas as formaturas e profissões que podem ser encontradas nas uniesquinas da cidade, sem chegar a nenhum resultado, o doutor-por-extenso Datavenia, famoso advogado-de-porta-de-cadeia, falou:

– Advogado é doutor, sim, senhor.

– Médico também! – disse a faxineira, que já trabalhou na casa de um doutor-por-extenso médico.

– Por quê? – perguntou o oficial concursado.

– Ora, porque o imperador mandou chamar assim. – respondeu o doutor Datavenia.

– Que imperador?

– Ora, Dom Pedro.

– Qual Dom Pedro? Primeiro ou segundo?

– Ora… vamos mudar de assunto.

Mas o oficial concursado insistiu:

– E engenheiro? Engenheiro também não é doutor?

A conversa estava nesse padrão quando outro doutor-por-extenso adentra o atrivm. É o doutor HC, que a galera chama pelo apelido de Abescópio. Depois de um bom dia geral, bem pronunciado, doutor Abescópio dirigiu-se ao seu colega, doutor Datavenia, sem esquecer os indefectíveis pontos de exclamação. Impossível não rir dos salamaleques e acenos nervosos com as mãos acima da própria cabeça:

– Doutor Datavenia!!! Excelêêência!!! Ilustre e nobre causííídico!!! Ícone ciceroniano da oratóóória!!! Sua excelentíssima pessoa será bem-vinda à Praça do Arsenal!!! Osculá-lo-ei (vírgula por extenso) com um abraço hétero (vírgula por extenso) amanhã (vírgula por extenso) no Tribunal do Júri!!!

Como se pode ver, mais imperdoável ainda seria esquecer as vírgulas. Doutor Abescópio aprendeu a ab usar vírgulas num minicurso adquirido no pacote de um desses “congressos científicos” de hotel cinco estrelas. Incluso (haha), uma programação de passeios e desfile de modas para as senhôras acompanhantes. No minicurso, um instrutor português ensinou a escrever petições de miséria no modo armorial do século XVIII. E só podia ser assim, pois é muito vasta a diferença entre o purtuguês e o brasileiro.

Nos seus pergaminhos manuscritos, adornados com iluminuras medievais, selos, brasões, carimbos e muitas vírgulas neobarrocas, o doutor Datavenia não consegue registrar se uma página está correta ou concluída. Por

insegurança ou sei lá o quê, nunca escreve concluído, nem correto, ao se referir a um documento. Só consegue escrever assim: lauda conclusa em português castiço; e prossegue, até o delírio, quando escreve que o manuscrito está… com licença da palavra… está… escorreito! Jamais dispensa o latinório para ilustrar um parecer ou um simples andamento de processo. Tudo isso para esconder o seu desconhecimento da técnica processual.

A expectativa do dia seguinte era mais um julgamento do século, que ia rolar no auditorivm do forvm. Júri popular! Eita! A galera estava tão excitada com o spectacvla pervasit cavsis forensibvs que a administração foi obrigada a distribuir senhas. A fila de estudantes dos incontáveis cursos de Direito já cercava o quarteirão. A afluência vai ser por demais grande – no dizer de dona Maroca da tapioca molhada, sempre demonstrando erudição.

O réu é um feminicida, mas a causa não tem a menor importância. O público só está interessado na peleja sertaneja-universitária-doutoral, estilo UFC, do promotor, doutor Datavenia, contra o defensor, doutor Abescópio.

– Na defesa, joga um garantista – disse o oficial concursado.

– E no ataque? – a galera quis saber.

– No ataque… no ataque… só pode ser o caprichoso! – respondeu o vendedor de picolé, que veio de Parintins. (risos)

Apostas já estavam sendo feitas desde a madrugada. João Gordo, um bicheiro que tem um ponto no atrivm da delegacia, foi designado para organizar as pules. Tudo garantido, por delegação do dotô delegado da delegacia.

Só de zoeira, a torcida que jogava dominó já treinava mais um latinório de araque, proporcionado pelo ócio na praça, onde uns coroas aposentados reúnem-se todo dia para jogar damas e falar merdas. Alguns ainda não perderam o seu latim ginasiano. Muitos ditados sem graça passam de pais para filhos. São ditados machistas, misóginos e homofóbicos. Todos se referem a rábula, que traduzem como rabo.

Certa vez, de passagem pela praça, ouvi alguns desses ditados em latinório vulgar: rabvla beborvm abend not dominvm, traduzido como: cu de bêbado não tem dono. Já o ditado in rabvla cannis, mosquitorvm festorvm facit, significa: em cu de cachorro mosquito faz a festa. Até o Falcão apareceu por lá, certa vez, com o seu bordão: lends picantis in anvs avtrem q’svcvs est, ou seja, pimenta no cu dos outros é refresco. Todos riam. E, sempre rindo, vão preenchendo suas existências de mistério, fiéis à cultura da cidade que ostenta um dos maiores índices de qualidade de sobrevida de pessoas tão longevas quanto desocupadas. Esse paradoxo é definido na Sociologia como ócio criativo parnasiano.

***

Finalmente, eis que chega o dia da peleja. (Continua)