EDDYRKRÊUDYSSON

 

Vitor de Athayde Couto

 

A escrivã prossegue:

 

– Logo no início, quando começou essa mania de inventar nomes, houve uma certa resistência em muitos cartórios. Alguns chegaram até a listar os nomes permitidos. Mas com o tempo a pressão da bancada da bíblia ganhou espaço.

 

– E eles são tão poderosos assim?

 

– Ora, se eles conseguem isenção fiscal pra não pagar imposto, imagine pra conseguir o liberou geral de nomes estrambóticos. Só não pode ser nome de santo católico, conforme eu já disse. Nas bancadas do Congresso Nacional, quem faz a lei se junta nos BBB, ou melhor, BBBB, que são as bancadas da Bíblia, Bala, Boi e Bola. Por enquanto. Não me surpreendo se juntarem mais bês. Por exemplo, a turma do jogo do Bicho e do Breganejo. Aí vai ficar BBBBBB: Bíblia, Bala, Boi, Bola, Bicho e Brega. Eternamente imbatíveis. Esse é o nosso futuro cultural.

 

– Para, né? Vamos ter que mudar de país? Tou pensando em outra coisa que tmbém me preocupa.

 

– O quê?

 

– Lembro que minha bisa dizia que cada pessoa batizada com nome de santo é protegida. Como se o seu santo fosse um anjo da guarda. Eu conheço uma Francisca que reza todo dia pra São Francisco, pedindo a sua proteção. Acende vela no dia 4 de outubro, acompanha a procissão… Mas tenho notado que as pessoas estão ficando muito abandonadas. Esse abandono explica a loucura do mundo de hoje. Não é só porque tem muito mais gente, porque, se pensar bem, tem santo pra todo mundo. É porque ninguém tem mais anjo da guarda nem proteção pelo seu santo nome. Porque o nome já não é mais santo.

 

– Interessante a sua tiuría.

 

– Agora, eu pergunto. Qual a santa proteção que vai ter um infeliz desses, registrado com o nome de Eddyrkrêudysson?

 

– Aff… digo eu também. Esse aí, sim, parece nome de demônio.

 

– E as combinações dessas letras dobradas? Haha. Complica a vida de todo mundo, ninguém ganha com isso. Só pode ser mesmo coisa do cão dos infernos. E ele tá se vingando. Botaram tanto nome nele, né? Pois os nomes estão voltando, esta é a vingança. Não sei se é por causa dessas pregações que se ouvem por aí, mas, segundo a minha tiuría, toda vó tem medo do cão. Tem umas avós que nem pronunciam esse nome. O povo da roça… ninguém fala a palavra cobra. Sabem que cobra é um bicho que ouve muito bem, e já conhece todos os apelidos que botam nela: bicho do chão, bicho rasteiro, draco, malvada, feia, baranga…

 

– Êita! Rachega!

 

– No máximo, uma vó, se benzendo, diz que o cão é um anjo mau. Mas o povo sabe que o cão é o mesmo coiso, o coisa-ruim, tinhoso, lúcifer, capeta, belzebu (baal zeboub, em parnasianês ortodoxo), arrenegado, condenado, tentação, demônio, satanás, maligno, fioto, zarapelho, tisnado, anhangá, pé cascudo, cão miúdo, capiroto, unhudo, mafarrico, prefeito tranca ruas, ferrabrás, cão chinês, faz arminha, cramunhão, nem-sei-que-diga, e… ele, ele!”

 

– Ele quem? Quem?

 

– O diabo! É aí que o bicho pega.

 

– Por quê?

 

– Porque diabo é o nome mais falado. Quer dizer que ele é o mais chamado.

 

– Haha, isso me faz lembrar, no início, quando eu ainda estagiava no cartório, antes de me tornar escrivã titular. A minha luta para esclarecer aquelas mães que adoram botar, nos filhos homens, esses prenomes terminados em son. Só porque acham bonito. Repare, por exemplo: Carlson, Edson, Jackson, Robson, Jacobson, Lockdownson, Alcoogelson, Richardson (Richarlyson, em parnasianês). Não adiantava eu tentar explicar que essa terminação anglo-saxônica é um patronímico – isso eu sei porque caiu no meu concurso para escrivã. Patronímico remete para o nome do pai da criança.

 

– Verdade. Son, em inglês, significa filho, não é?

 

– Correto. Assim também fazem os judeus, cujos nomes terminam com vich, vitch ou vitz, a depender do grau de instrução ou da ressaca na cabeça do escrivão que atende no cartório, no dia do registro, haha. Os russos também usam patronímicos que significam “filho de”. Se o russo é judeu, usa os mesmos vich, vitch ou vitz, além de outras terminações como ski ou sky entre as mais comuns. Se o russo não é judeu, usa ov, para meninos, e ovna, para meninas. Teve até uma pastora que recomendou os patronímicos. Nas suas pregações ela dizia que, na língua russa, ov significa roupa azul, e ovna significa roupa rosa. E que a Terra é plana. Depois dessa, eu desisti.

 

– Por que desistiu? Você agora não é escrivã titular? Li que tem concurso para escrivão, com milhares de inscritos. Na fila, tem até bacharel com doutorado.

 

– Sim, mas as igrejas são politicamente mais fortes do que os cartórios. Não importa o conhecimento técnico da processualística e das leis. Os pastores estão acima das leis que eles mesmos aprovam naquelas bancadas BBBBBB do congresso, conforme eu lhe disse. O certo é que, a partir daí, a maluquice virou uma loucura sem limites. Ou, como diz um amigo meu, o maluco ficou doido! Me diga se não é coisa do coiso?

 

– Verdade. Isso não parece coisa de gente.

 

(próxima crônica: “TUDO CORNO”)

 

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Escute o texto com a narração do próprio autor: