EFEITO CREMALHEIRA
Vitor de Athayde Couto
Thales de Azevedo liderou pesquisas sobre o comportamento das famílias de imigrantes no Brasil. Se bem me lembro, ele referia-se a um certo “efeito-cremalheira”.
Esse eminente professor baiano observou que as residências dos imigrantes pesquisados apresentavam uma oposição significativa entre espaço e conforto. Seria esse o tal efeito-cremalheira? Infelizmente, não encontrei analogia a outras pesquisas que envolvem o uso do espaço, tão caro aos arquitetos e geógrafos.
Mas, em que consiste o efeito cremalheira?
Primeiro, não se trata de um fenômeno exclusivo do passado, remontando às migrações de dois séculos atrás, quando galegos, carcamanos, japoneses, alemães, sírio-libaneses, poloneses… começaram a povoar o Brasil. Em segundo lugar, esse processo parece continuar, envolvendo descendentes, inclusive nas migrações internas ou interregionais.
Antes das últimas gerações arrogantes, típicas da classe média premium pós-colonial, os primeiros imigrantes eram descendentes de camponeses europeus pobres e explorados. E famintos. Para disfarçar a pobreza, construíam casas que, apesar de precárias, tinham fachadas fake – como se diz hoje em dia. As fachadas enganavam bem. Elas sinalizavam casas bem montadas, construídas com os melhores materiais. Mas eram só fachadas.
Atualmente, basta um espaço revestido com cerâmica, capaz de abrigar, na frente da casa, um automóvel ou uma moto. Num dos cantos nunca falta a imponente e indefectível churrasqueira. Eis aí, por semelhança, o efeito cremalheira. Do meio pra trás da casa nada mais interessa. Os quartos das crianças podem ter umidade, mas, qual o problema? O plantonista do posto de saúde garante os antibióticos de uso continuado, enquanto os laboratórios, agradecidos, garantem os mimos aos doutores.
Coincidência? Pois, cremalheira, que se assemelha a uma churrasqueira premium, nada mais é do que uma haste de ferro sobre o fogo, servindo para regular a altura do pot (caldeirão) pendurado numa corrente.
Assim, a churrasqueira – verdadeira unanimidade nacional – tornou-se o mais novo ícone que diversifica o nosso melting-pot ou caldeirão cultural. Verdadeiro monumento, a sua chaminé lembra a torre de uma igreja, diante da qual todos se curvam para adorar São Lipídio, num ambiente dos mais elevados níveis de espiritualid… ops, de triglicérides.
Neste grave momento da nossa história, o IBGE contabiliza mais igrejas do que escolas e postos de saúde (são 579,8 mil contra 264,4 mil e 247,5 mil, respectivamente). Mas nem as igrejas conseguem superar os 813,2 mil clubes de atiradores e caçadores (CAC).
Quanto às churrasqueiras, nem é preciso contar. Elas superam, juntos, todos os CAC, igrejas, escolas e postos de saúde.
Se Saint Hilaire ressuscitasse e retornasse ao Brasil, ajustaria a sua célebre frase para ficar mais próxima da realidade: “Muita churrasqueira e pouca escola os males do Brasil são.”
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