FOFURA E FOFURICES

 

Vitor de Athayde Couto

 

O outdoor anuncia: “Para vereador, vote no doutor…zinho”

 

– Haha, que fofura. Como diria Drummond, vereador-doutor é só uma rima. Neste vasto mundo em que a gente ainda sobrevive, o Brasil concentra o maior número de vereadores-doutores por habitante.

 

– Vereadores-doutores? Diabéisso? – perguntou Anaïs.

 

– Sei lá, miga – disse Mani. É só uma rima. Ou, então, são bacharéis mal resolvidos na profissão, à procura de emprego, de mei-de-vida. Para os eleitos é uma solução. São fernandinhos, fabinhos, jairzinhos… Fofurices, com seus nomezinhos no diminutivo, que atraem muitos votos, como se fossem pets.

 

– E o povo?

 

– O povo? Ora, o povo… Povo é uma abstração. Você conhece algum povo? Eu, não. Só conheço minha família, amigos, vizinhos, colegas de trabalho… Conheço Edvaldo, Ioneide, Mara, Carlos Alberto, Jadson, Gildete… Mas, povo mesmo, sei o que é isso não. Você sabe, Anaïs?

 

– Nunca pensei nisso, miga. Agora que você falou, começo a me perguntar também. Povo, para ser povo, tem que ter identidade, coesão, né? Algum objetivo comum, essas coisas que a gente vê muito em filme estrangeiro, principalmente nos países em momentos de guerra. Mas, aqui no Brasil, eu acho que não tem povo. Dá uma inveja…

 

– Inveja de quê? De guerra?

 

– Sim, miga.

 

– Oxe, por quê?

 

– Ora, porque nessas guerras estrangeiras morre menos gente do que no Brasil em tempos normais. Não acredito que Deus seja brasileiro. Se aqui tivesse só guerras, vulcões e terremotos, morreria menos gente.

 

– Aqui morre mais gente por causa da pandemia?

 

– Não. Por causa da violência, do feminicídio, do trânsito, do racismo… em uma só palavra, do ódio. Em tempos normais. No Brasil, pandemia é só um detalhe.

 

– E esse murundu de gente cantando hino, coberta de bandeiras? Não é povo?

 

– Não, eu acho que isso é público. Aqui só tem público.

 

– Massa, Anaïs. Bem pensado.

 

– Não fui eu que pensei, miga. Quem me dera. Eu ouvi isso de um professor, na UFBA, Muniz Sodré. Ele começou o semestre dizendo “Eu penso, logo sou problema”. Aí lembrou que D. Pedro II nomeou um médico francês, Louis Couty, para o Museu Nacional. O francês desembarcou no Rio de Janeiro, e foi logo dizendo, bem na lata: “o Brasil não tem povo”, ao que Lima Barreto acrescentou: “tem público”.

 

– E qual é a diferença entre povo e público?

 

– A diferença eu não sei, mas, público é gente que se aglomera, aplaude, vaia, grita, bebe, dança, xinga, briga, morre, mata, fuma erva estragada e vai votar.

 

– E povo?

 

– Sabe que eu não sei? Nunca saí do Brasil. Mas, público, garanto que sei o que é. Desde pequena ouço falar em distinto público, respeitável público…

 

– Onde, miga?

 

– No circo.

 

– Ata.

 

______________________________________________________

Escute o texto com a narração do próprio autor: