FORMAÇÃO DO POVO PARNASIANO

 

Vitor de Athayde Couto

 

Consta que… ouvi dizer… dizem por aí… isso não significa nada, mas serve, quando não se tem certeza de nada. Então, consta que o povo parnasiano é originário de uma leva de comerciantes expulsos do reino da Falocracia.

 

Mani leu no diário de sua tia-avó Conceição que os falocratas desembarcavam em Parnasia em grandes levas escoltadas pela Armada Real. Durante as longas viagens, todos eram fortemente vigiados. Descendentes de caixeiros-viajantes do deserto, seus ancestrais se autodeclaravam empresários.

 

Até hoje os empresários cometem crimes e contravenções os mais variados. Práticas criminosas foram reforçadas por causa da paranoia de quem transportava mercadorias em camelos e teve que se humilhar, vendendo tralhas em lombo de burros, para os neotuaregues locais, nos caravançais do novo mundo.

 

Mani prossegue: vó Ceiça conta que os comerciantes são mascates. Isso não me constrange. Fui criada nesse meio e tudo parece natural. Tudo. Até o machismo, cultura de dominação patriarcal. É difícil entender, mas está na minha formação. Retomo essa história mais adiante.

 

Vó Ceiça sabe de muita coisa. É tanta informação que às vezes eu penso que ela inventa esse tal de consta que… Pois bem, consta que nos livros da Secretaria da Receita Provincial e dos Bons Costumes da Família das Pessoas de Bem, encontram-se registradas muitas apreensões de contrabandos, além de diversos crimes e contravenções: receptação de medicamentos e outras cargas roubadas, jogos de azar, crimes de mando em geral, invasão de imóveis, inclusive em cemitérios, grilagens, queimadas, garimpos ilegais, subornos a políticos, funcionários e agentes da segurança pública. Pra não falar dos tráficos de drogas, armas, mulheres, e até de crianças!

 

Segundo os antropófagos, ops!, antropólogos, Parnasia foi ocupada inicialmente por comerciantes sonegadores.

 

Na antiguidade clássica, Parnasia era tida como a maior penitenciária real de além-mar, território do poderoso reino falocrata. Que mar é esse, ninguém sabe. Mas ninguém duvida que o mar é salgado como lágrimas, dada a quantidade de sal exportado para o gado confinado nos cercadinhos do planalto central.

 

Consta que a penitenciária real era comandada por um general com silhueta de urso. Usando pijama de flanela verde, 24 horas por dia, o general tentava disfarçar sua personalidade psicopata. O pijama tinha o emoji de um teddy bear bordado no bolso. As crianças olhavam para o general de pijama e gritavam, enternecidas:

 

– Mamãe, olha o ursinho gordo! Eu quero um, você me dá?

 

As crianças nunca ouviam resposta. Naquela época, as mães parnasianas só podiam falar três coisas:

 

– Sim, senhor! / Cala a boca, menino! / e xô, galinha!

 

Hoje, elas falam menos ainda. Nos fins de semana, dizem apenas:

 

– Vou acolá, volto jajá!

 

“Jajá” e “vai dar certo” são palavras-chave no dicionário de parnasianês ou vocabulário das mentiras. Não se deve confundir “vai dar certo” com “vai dar, certo?”. As mães nunca voltam no mesmo dia. Ao encontrar os amigos, vão logo gritando:

 

– Sextou, galera!

 

Acontece que elas nem sabem o que significa sextou. Pensam que é sexta-feira, quando começa o fim de semana. Certa vez, um gringo, que eu conheci na rota das infecções, e que sabia falar brasileiro, explicou o seguinte: sextou é formado dos vocábulos sex-to-u. Lendo, em inglês, significa sex to you, ou sexo para você.

 

Cumprida a esbórnia hebdomadária, as mães só voltam pra casa na segunda-feira, quando, eventualmente, encontram dendicasa pelo menos um dos pais, quase sempre bêbado, mas sempre tatuado. As brigas que se sucedem já não surpreendem ninguém, nem os vizinhos. São apenas rusgas excitantes do pós-ressaca do cervejão, drogas, espetinhos, malhação, bombas, creme de galinha e muito caldo de carne com ovo e pão de massa grossa.

 

Os falocratas binários sempre foram campeões mundiais na modalidade violência doméstica. De ambos os lados.

 

Fui criada nesse meio. Desde criança presenciei todo tipo de violência. Aprendi que as mães, de tão surdas, até se divertem com esses arerês e auês. Mas a surdez é temporária, só por causa da briga de som entre o lambadão cuiabano, o batidão gospel, a pisadinha e os forronejos em geral.

 

Tudo isso decorre da antiga cultura de cabarés. Não posso esquecer o breganejo que alimenta o sonho de passar no Enem. Já viralizou na internet que o tema da redação deste ano será “Solo mai levi mai Jhonny”, mas ninguém consegue traduzir esse ingrêis. Nem o gúgli. Felizmente minha mãe de santo já deu a senha. Ela disse que a resposta está no segundo verso: “Solo mai levi Queiroz”.

 

– Diabéisso? – perguntei –. E minha mãe preta traduziu assim:

 

– “Ô mô fi, solo tu num vai, mai levi o Queiroz, viu mô fi?”.

 

Esse é o povo parnasiano. Sejam todos bem-vindos à nossa cultura.

 

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Escute o texto com a narração do próprio autor: