HORA DO CAFÉ

 

Vitor de Athayde Couto

JANEIRO DE 1964 (HORA DO CAFÉ)

Três horas da tarde. Sob um calor de 30 graus, eu ouvia a convocação diária de minha mãe:

– Tá na hora do café! Tá na meeesa!

Todos se dirigiam imediatamente aos seus lugares de costume, onde se encontravam as suas respectivas guarnições. A minha xícara (com seus respectivos pires e colherzinha) eu já reconhecia de longe, pois havia sido um presente da minha vó – a quem eu pedia bênção toda manhã bem cedo.

No intervalo das notícias do dia, ouviam-se músicas de verdade. O locutor da rádio nacional rodava, ele mesmo, os elepês. Assim, ele atendia aos pedidos de músicas, feitos pelo robusto telefone preto, sempre imune a vírus e golpes. No máximo, o telefone preto recebia trotes de crianças inocentes que sempre tinham um tempinho sobrando. Ninguém usava o telefone preto para dar golpes financeiros, só notícias importantes, como o nascimento ou a morte de alguém. O telefone preto estabelecia o limite entre a vida e a morte.

Meu avô ocupava uma cabeceira da grande mesa, meu pai, a outra. Como as famílias ainda eram íntegras e inteiras, minha mãe e minha vó traziam, do forno a lenha, o esperado bolo de goma –anos mais  tarde, a indústria de alimentos processados iria chamar de polvilho doce ou azedo com conservante químico industrial.

Sobre a mesa, o café coado no pano de café, que também era de verdade, esperava-nos no bule aquecido pelo abafador – um acolchoado revestido por uma capa branca decorada com um bordado caseiro que representava um bule colorido.

O leite de verdade era fervido por um bom quarto de hora. O açúcar dormia no açucareiro. Algumas formigas atestavam que ele era tão de verdade, que, nos dias de chuva, ficava úmido.

Café com leite, açúcar e bolo de verdade. Todo mundo feliz. De verdade.

JANEIRO DE 2024 – HORA DO LUNCH (LANCHE)

Qualquer hora do dia. Sob um calor de 40 graus, com direito a sensação térmica de 67, ouço comentários, assim:

– Parece que vai rolar um lanche.

Aleatoriamente, as pessoas dirigem-se a qualquer lugar da mesa, onde bowls (tigelas) e mugs (canecas) amontoam-se sobre jogos americanos. A vergonha dos antepassados aliada ao complexo de vira-latas faz todos afogarem corn flakes (cereais matinais) num líquido branco conhecido como milk (leite).

Já não sou mais o mesmo. Nem eu, nem ninguém. Agora, as pessoas precisam saber o que é pão, pão, queijo, queijo. Mas não é mais assim. Cada um cultiva suas mazelas. Cada um faz seu café, seja coado no pano, no filtro de papel, de aço, em cápsulas descartáveis, na moca, máquina, pressão turca que agora chamam de pressão francesa… café robusta, arábica, dito descafeinado, gurmê, orgânico, certificado…

E o leite? De vaca, ovelha, cabra, desnatado, integral, instantâneo, composto ou sem lactose…

E o pão? Refinado, 20%, 40%, 60%, 80%, integral, com glútem, sem glúten, francês, italiano, português, rústico, baiano, cacetinho, vara de sal, de cachorro quente, de hambúrguer…

E o açúcar? Refinado, cristal, mascavo, demerara e eventualmente adoçantes de stevia ou o popular aspartame barato.

E os ovos? Duros, moles, mexidos, com sal, sem sal, de granja, de quintal, caipiras, brancos, vermelhos, com bacon… e até salsichas com receio, ops, com recheio do desconhecido.

Enquanto isso, as novas gerações batem polpas congeladas no liquidificador, para alegria dos dentes apertados nos aparelhos da clínica de estética.

Tentei chamar meu avô para a mesa que já não existe. Mas ele não ouvia. Depois que um jovem médico receitou-lhe uns remédios de última geração tecnológica, desenvolvidos por inteligência artificial e produzidos na impressora 3D, meu avô já quase não anda. Mesmo assim ele é feliz na sua cadeira qualquer, pois a confortável cadeira do vovô foi ocupada pelos netos.

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Ouça o áudio com a narração do autor: