JURIDIQUÊS NEOBARROCO
Vitor de Athayde Couto
Conversei com uma escrivã parnasiana, grande conhecedora do juridiquês – disse Mani. Ela contou que está na moda lançar livros-de-lançamento, para alegria das gráficas e empresas publicadoras. São pergaminhos bajuladores, bem longos, escritos em estilo juridiquês neobarroco, cheios de verborragias típicas da elite. Senão, são fac-símiles extraídos dos registros de cartórios e arquivos, onde jazem livros enormes, cheirando a guardado e a naftalina. Línguas mortas enclausuradas em arquivos igualmente mortos.
Cada frase, que nunca tem menos de dez linhas contínuas, é recheada com um ror de apostos e mesóclises. Esses escritores autodeclarados são incapazes de compreender Clarice Lispector. Na “Insônia infeliz e feliz”, Clarice chega a escrever frases, cada uma com uma única palavra. Ela alterna uma palavra e um ponto; outra palavra, outro ponto. Por exemplo: “…solidão. Ler? Jamais. Escrever? Jamais.” E pensar que ela já escrevia assim na década de 60 do século passado, fluindo completamente livre do estilo cartorial, de puxa-saquismos, mesuras de minuetos e rapapés.
Quando a obra neobarroquiana-parnasiana está quase pronta, o autor, que se autodeclara escritor, ou poeta, ou ambos, fertiliza o texto, semeando sobre ele um punhado de vírgulas.
O campeão parnasiano na modalidade transbordamento de vírgulas, apostos, ênclises, próclises e mesóclises é um bacharel bem das antigas, conhecido como doutor por extenso Datavenia. Seus pares tratam-no por excelência. Não satisfeitos, acrescentam ilustre e nobre causídico doutor por extenso Datavenia, sempre terminando a exclamação com um ponto da dita cuja, e acenando com a mão direita bem acima da cabeça. Assim:
– Excelente excelência e excelentíssima! Ilustre e nobre causídico! Doutor por extenso Datavenia! Cumprimentá-lo-ei na tribuna!
– Ipso facto, doutor por extenso Procurador! Bis in idem! Osculá-lo-ei logo mais!
Quem passa por perto consegue ler no ar, tanto as vírgulas quanto os pontos de exclamação. Só vendo a cara do doutor por extenso Datavenia, quando atrai um enxame de salamaleques no interior do Fórum de Parnasia (FP).
Nos seus pergaminhos manuscritos, adornados com iluminuras medievais, o doutor por extenso Datavenia não consegue registrar quando uma página está correta ou concluída. Por insegurança ou sei lá o quê, nunca escreve palavras como concluído, ou, simplesmente, correto, quando se refere a um documento. Prefere escrever lauda conclusa, em português castiço. Ao final, antes de espalhar as vírgulas, chega ao delírio quando escreve: o texto está escorreito. Dito isto, agora, sim, agora, vai: vírgulas à mancheia!
Depois de três uísques, três águas de coco e três idas ao banheiro, o doutor por extenso Datavenia acabou confessando, cheio de mistério, que estava pretendendo fazer um pós-doutorado em Coimbra, porque lá ainda se fala português. Afinal, se ele já é doutor… né? Daí começou uma discussão entre os presentes ociosos, com o objetivo de saber se pós-doutor é título ou não.
Finalmente, ajudados por um burocrata da pró-reitoria de alguma uniesquina, chegaram à seguinte conclusão. Disse o burocrata: senhores, ao pesquisar, em língua portuguesa, se pós-doutor é título, Vossas Excelências só vão encontrar futricas acadêmicas. Mas, se Vossas Excelências pesquisarem em inglês, encontrarão incontáveis laudas referentes ao pós-doutorado como title (título). Embora tivessem protestado, os acadêmicos reconheceram que a pós-graduação em geral não tem nada a ver com a língua portuguesa. Tudo começou em inglês: MBA, MS, MA, PhD e Post Doctor. No princípio, só se falava de peagadês, lembra, Anaïs? Depois foi piorando… piorando… até que o doutor por extenso Datavenia ficou tão estressado que acabou desistindo do pós-doutorado. Mesmo em português. Se pelo menos ainda fosse em Latim…
(próxima crônica: “EVOLUÇÃO DO PARNASIANÊS”)
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Escute o texto com a narração do próprio autor:
Meu sempre professor e amigo Vitor de Athayde Couto expressa o que alguns (como eu, poucas vezes) se atrevem a ver na TV Justiça. Parece que muitos por lá codificam a mensagem por dois motivos: a) Para tentar passar a mensagem de que são sábios e que devem ser pouco compreendidos mesmo, afinal são sábios; b) Para trancafiar argumentos pouco plausíveis expressos em decisões judiciais e que se encontram nos livros e normativas do direito (afinal em boa parte das vezes busca-se na prateleira aquilo que é mais aderente àquilo que se quer). Enfim, a algum tempo existe um movimento de uma parte “bem pequena” da sociedade de que os “doutores por extenso Datavenia” possam se expressar em “língua portugesa”, ou seja, em alguma linguagem que as pessoas possam entender. Mas parece que isso vai demorar muito tempo. A transposição do barroco é difícil, é quase como curar-se da dependência de uma droga poderosa, dessas que apenas alguns poucos seres humanos conseguem êxito. Ah poxa, agora talvez eu esteja falando de outra espécie animal, Datavenia.